A descoberta de vida no meio da palha: Solange Firmino para Nick do Rosário

 

 

Gaveta de cinzas: solilóquios, de Nick do Rosário – Maputo: 2021, Nick do Rosário & Gala-Gala Edições.

 

No geral, os poemas são evocativos e contêm um sentido profundo de contemplação sobre a vida, a morte, a natureza e as emoções humanas. Apesar de o livro “Gaveta de cinzas” ser dividido em três partes, aqui constam poemas misturados.

O primeiro poema escolhido evoca uma imagem de liberdade e abertura proporcionada pela linguagem e palavras. A metáfora da ‘brisa das palavras’ e o entrelaçar dos fios que se soltam sugere que a comunicação e expressão podem ser inspiradoras e libertadoras. A conexão entre a linguagem e a expansão do universo transmite uma sensação de magnitude e conexão com algo maior. A simplicidade e clareza das palavras usadas ajudam a transmitir a ideia central do poema. Notem que não há título no poema. Esse é o estilo do autor, que usa muitos jogos de palavras e poemas curtos.

A brisa das palavras
e o entrelaçar dos fios que se soltam
podem ser ebulição para os homens
para mim é a linguagem a estender-se
a abrir o universo.

Este poema tem uma qualidade de contemplação serena. O pássaro que voa e costura sonhos cria uma imagem de esperança
e renovação, enquanto ‘outro alvorecer’ enfatiza o ciclo contínuo da vida. A brevidade do poema captura a essência da natureza em constante transformação e pode ser vista como um reflexo da vida cotidiana, com o ‘rebento’ representando a persistência da vida em meio às mudanças.

 

OUTRO ALVORECER

Um pássaro voa
matinal
costura sonhos

Em outro alvorecer
é ainda ele
um rebento.

 

O poema abaixo possui um tom melancólico, evocando memórias da avó que se foi. A sabedoria é descrita como uma ‘marca de um leito que se apagou’ ou uma lembrança registrada em uma fotografia, agora alterada pelo tempo. A sala cheia de ‘silêncios húmidos’ e o desejo de ‘descobrir o corpo no poema’ sugerem um luto profundo e a busca por uma conexão com a parente falecida. O poema transmite uma sensação de saudade e contemplação.

 

Em memória da Avó Elisa

A sabedoria
é marca de um leito que se apagou
ou da vertigem da fotografia
que o tempo mudou.

Como uma sala cheia de silêncios húmidos
desperto a fome
o pingar da chuva
a vontade de descobrir o corpo no poema
uma fibra que se metamorfoseia
onde me leio.

O próximo poema é curto, mas muito impactante. A imagem do relógio e a referência à lua como ‘lua morta’ transmitem uma sensação de finitude e passagem do tempo. O ‘Tic-Tac’ ecoa como o som de um relógio, destacando a inevitabilidade do tempo passando e, ao mesmo tempo, a presença constante da poesia. É uma meditação sobre a efemeridade da vida e da criação artística.

Tic-
O relógio ressoa
teu corpo
lua morta
a poesia
-Tac.

 

Aqui, a queima do silêncio na madrugada pode ser interpretada como uma metáfora para a intensidade das emoções não expressas. O poema sugere que o silêncio é ardente e carrega consigo uma espera angustiante. Há uma sensação de desejo não satisfeito e solidão que permeia o poema, criando uma atmosfera introspectiva.

 

Ilustração: Jasmine Le Nozach

 

[O SILÊNCIO QUEIMA A MADRUGADA]

O silêncio queima a madrugada
a espera moribunda
incendeia o corpo
e o vazio que não
conforta.

O poema a seguir evoca imagens celestiais. A comparação do corpo com um pássaro que pousa é delicada e indica uma conexão com a natureza e o cosmos. O ‘sol queima as faces desbotadas’ representa a passagem do tempo e o impacto do mundo exterior sobre o indivíduo. A referência ao corpo como um ‘astro de sonhos’ coloca o ser humano em um nível elevado de contemplação e aspiração, conectando o eu interior ao vasto universo.

 

ASTRO DE SONHOS

Como um pássaro
pousa teu corpo

E o sol queima
as faces desbotadas

Como um astro
de sonhos
no voo matinal.

 

Este poema aborda a melodia do corpo e a conexão com outra pessoa (‘Encontro’). As palavras ‘Inventário’ e ‘prelúdio’ sugerem que o sujeito lírico está tentando compreender os sentimentos e a conexão com a outra pessoa. A linguagem musical e poética adiciona um toque sensível ao poema, expressando a complexidade das emoções e relacionamentos
humanos.

 

NOTAS

Melodia teu corpo:
Encontro

Inventário
ou prelúdio
em mim.

 

O poema ‘Espera’ parece expressar a vivência do luto. A metáfora de viver ‘de pétala em pétala’ e a referência à dor de alguém que ‘partiu’ transmitem um sentimento de tristeza e saudade. A escolha das palavras é eficaz em capturar a sensação de perda de alguém amado. Ou a pessoa está despetalando flores enquanto aguarda o ser amado, em um ciclo de ‘bem-me-quer’.

 

ESPERA

Vivo-te, amor,
de pétala em pétala
na dor de teres partido.

 

 O poema seguinte retrata a busca por alegrias e sentido na vida, simbolizada pela ‘gaveta de cinzas’, expressão que dá nome ao livro de poemas. A descoberta de vida ‘no meio da palha’ sugere que, mesmo em meio a desafios e momentos difíceis, a vida pode florescer e revelar beleza inesperada. É uma mensagem de esperança e positividade que ressalta a importância de valorizar as pequenas alegrias que a vida pode oferecer.

 

GAVETA DE CINZAS

Busco por alegrias
na gaveta de cinzas

E há vida
no meio da palha.

 

 

Nick do Rosário (Quelimane, província da Zambézia) – Licenciado em Literatura Moçambicana pela Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane. Publicou o livro Gaveta de cinzas: solilóquios (poesia-2021), pela Gala-Gala Edições, e Poemas à sombra da infância, pela Escola Portuguesa de Moçambique. O escritor foi o vencedor do “Prémio Literário 21 de Agosto – 2022”, que contempla o ganhador com a obra e também com um valor monetário. Nick do Rosário foi premiado com a obra As mãos do medo.

 

Solange Firmino – Rio de Janeiro (1972). Tem Licenciatura em Português e Literatura pela UERJ. Trabalhou com Jardim de Infância, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Sala de Leitura em Escolas Municipais e Estaduais do Rio de Janeiro. Venceu o Prêmio Literário da Fundação Cultural do Estado do Pará com um livro de haicais e o 2º lugar no Prêmio da Biblioteca Pública do Paraná, na categoria Literatura Infantil. Possui 7 livros de poesia publicados.

 

 

 


				

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