
Quando abriu os olhos descobriu-se dentro de uma manjedoura de luzes púrpuras. O mundo era uma ametista que brilhava, cores nascidas dentro da pedra oca. Os olhos do menino fecharam-se para encontrar verde escuro e azul noite. Indeciso, optou por abri-los. Conduzido pela maré de uma sombra-sonho, esbarrou nos anteparos da realidade. Sentiu o branco da madeira laqueada de sua cama, depois deixou de entender as camadas de profundidade do móbile pendurado no teto. Os brinquedos fosforescentes espalhados pelo quarto eram sobras de um dia que nunca conseguira ver nascer. Deitado, acompanhava-os até a proximidade de sua cama, não se atrevia a olhar embaixo dela. Era provavelmente por ali que nasciam e morriam os escuros, e todas as criaturas feias que dele brotavam. Com esses seres fizera um acordo, procuraria não se mexer muito na cama e não fazer barulho depois que a luz fosse apagada. Em troca eles nunca apareceriam.
Sobre o tapete espalhava-se o dia e as pequenas sujeiras exploradas com a ponta do dedo indicador, as imperfeições da parede eram percebidas com as duas mãos, as mesmas, que agora, também sentiam a parede metalizada de um vagão de metrô. Quando o vagão abandona a noite subterrânea e mergulha nas sobras avermelhadas de um dia cansado, o homem, menino, estranha as luzes derramadas sobre os bancos estofados, espalhadas por cabelos longos e rostos cansados. Os olhos incomodados encontram triângulos roxos antes de voltarem ao cotidiano, camadas de gente disputam espaços, espaços procuram ausências, o crepúsculo floresce dentro do movimento, as crenças cruzam certezas derretidas no lamaçal das dúvidas. Indeciso, o vagão transforma rostos e corpos dos passageiros.
Quando a porta se fecha e uma voz anuncia a próxima estação, eu, aquele que foi, é, e muda, percebe, percebo, uma mancha de sol avançando pelo rosto de uma moça, como ainda não atingiu os olhos ela não a percebe, somente eu, me encolho, viro de lado, não quero vê-la fechando os olhos por causa do sol. Mentira. Não é só por isso que desviei o olhar, é porque a moça tem um brilho nos olhos, que se espalha pela cabeça e corpo, e que já não consigo encontrar em mim.
Há um peso que flutua pelos ares e parece emendar os instantes, e do qual, talvez esteja enganado, parece que me afasto a cada manhã. É como se a cúpula côncava do planetário começasse a misturar concreto rachado à constelação de Órion. Para fugir das luzes descubro chicletes pisados no chão emborrachado. Sentado, cutuco com a ponta do dedo, experimentando a consistência. Das veias, ligamentos e intestino, emana uma rigidez que não parece minha. É o mundo envelhecendo.
No caminho de casa está o grande rio cinza-esverdeado, camadas de cores e movimento. O animal primitivo não se permite emoções, e com sua boca-primavera, engole as minhas. Aceito um final de tarde sendo um rio. Agruras e ansiedades são galhos secos carregados de maneira quase anônima.
Minhas mãos têm as cores de meus brinquedos, e agora, eles são correnteza. A paz vinda das águas só é interrompida, quando uma parte de meu raciocínio decide perguntar o que existe sob aquela superfície tranquila das águas. Eu sou dois, um que permanece em paz, e o outro, que inventaria tipos de peixes perigosos que devoram carne branca como se fosse líquida, troncos apodrecidos, que com uma batida no lugar correto te mandam direto para debaixo de uma lápide caiada de branco. Onde novamente haverá o direito de sonhar o que sonham as crianças pequenas.
Enquanto piso as pedras ásperas, desconfio de todas as realidades desveladas pelos meus sentidos. Engulo a noite que chega raspando retinas, espalhando cheiro de chuva. A doçura do céu ametista é rasgada por um instante silencioso de brilho. O estrondo escuro chega um segundo atrasado. Gotas gordas espantam passarinhos, por todos os cantos armam-se pequenas tendas escuras, a humanidade persegue suas marquises.
Descubro refúgio cinzento, daqui observo como são perecíveis as marcas secas deixadas pelos pneus. Os rostos misturam resignação com pontinhas de esperança. Desconhecidos descobrem histórias em comum e formam uma parede de proteção que me envolve por todos os lados. Atrás de mim uma loja de armarinhos. Nas prateleiras centenas de novelos de todas as cores possíveis, que distorcidas pela água que escorre pelos vidros, constroem um movimento colorido que contrasta com o cheiro de preocupação daqueles que não tiram os olhos dos relógios.
Tenho vinte centímetros livres ao meu redor, o suficiente para perceber meus pés perfeitamente protegidos das poças d’água. Em frente ao grupo de homens e mulheres que me envolvem há uma pequena árvore recentemente plantada, seu caule fino está amarrado a uma estaca de madeira. A planta recebe toda a água que escorre da marquise. Seu tronco balança, as folhas parecem buquês sendo oferecidos, a dança da plantinha se assemelha a de um palhaço louco, e isso me agrada.
Todos meus vizinhos usam sobretudos escuros, cachecóis e luvas. Sinto o calor que vem em minha direção. Os carretéis de lã giram e a impressão que me dá é que daquela vitrine pode sair um batalhão de pessoas felizes que contaminarão o mundo inteiro com sua felicidade. Fecho os olhos para só escutar o barulho da chuva. Meu refúgio é perfeito, torço para que a chuva demore a parar, e para que as cores que vêm da vitrine possam dançar pelo mundo, vestidas com as formas que tinham meus brinquedos quando dormiam no escuro.
Guido Viaro é um escritor, cineasta, administrador cultural e palestrante nascido em Curitiba em 1968. É autor de 22 romances dentre eles o livro O Cubo Mágico, premiado com o primeiro lugar na categoria romance no Concurso Biblioteca Digital 2020, da Biblioteca Pública do Paraná. É também autor do ensaio filosófico O Labirinto Espelhado e de quatro filmes entre ficção e documentários. Desde 2009 administra o Museu Guido Viaro, entidade cultural que tem por missão divulgar e preservar a obra de seu avô, o pintor italiano Guido Viaro. No museu as atividades artísticas não se atém à pintura, mas englobam música, cinema, literatura e teatro.
