
Alessandra é carne. Ela é maior do que a religião para aqueles que creem, e mais profunda do que a última verdade filosófica. Diante de sua existência, as grandes dúvidas derretem como o queijo na panela quente. Tudo o que sobram são certezas, construídas com um material indestrutível, eterno. Ela encerra em si todas as belezas, representa a soma de tudo o que brilha, reflete, de cada suspiro cheio de esperança, de todo odor de rosas, de cada primeiro sorriso da criança, e mesmo assim, Alessandra é carne.
Visitávamos as muralhas que circundam Lucca, na Toscana, Waterfall dava sua aula quando uma família de italianos se aproximou, ele convidou-os para ouvirem o que dizia, o pai de família agradeceu mas disse que não compreendiam inglês. Waterfall disse que não se incomodaria em traduzir-lhes o conteúdo. Eu ainda não havia prestado atenção no grupo, composto pelo casal, dois filhos, e uma mulher idosa. Foi quando o mundo se fez carne. Dois olhos escuros que pareciam conter todo o espírito humano, e que brilhavam como diamantes negros. Baixei imediatamente a cabeça procurando me recuperar do golpe, respirei fundo e deixei com que algumas palavras pronunciadas por Waterfall fossem escutadas: “iniciada em 1504, a construção só foi concluída em 1648, a República de Lucca temia a expansão da República de Florença”, então passeei meus olhos pela muralha, mas especificamente pela vida que crescia por entre os blocos de pedra, eram tentativas de arbustos que contra todas as forças contrárias, afirmavam suas existências. Então foi a vez de eu afirmar a minha, tomei coragem, fiz com que a muralha e todo o resto do universo desaparecessem e, sem medo de queimar minhas retinas, olhei na direção da moça.
Ela pareceu perceber meu interesse e virou o rosto na direção de Waterfall, que a essa altura traduzia para o italiano o que acabava de explicar sobre a muralha. Sem muito alarde, dei dois passos para trás, como fazem os pintores que desejam obter um ângulo de visão ampliado. Sua pele, apesar de ser branca como o mármore, guardava marcas de que aquele organismo possuía a maior saúde a que alguém pode ter direito, as maçãs do rosto eram levemente manchadas por uma tonalidade rosada que só havia visto anteriormente em telas de grandes pintores. Voltei-me para a muralha e os pequenos musgos que cobriam a parte mais próxima do chão. Não queria parecer vulgar, mas uma força maior fazia com que meu pescoço perdesse a autonomia. Mudei de posição, tossi, fiz perguntas, e finalmente consegui um espaço onde conseguiria contemplá-la sem que ela ou nenhum membro de sua família percebesse.
Ela era a harmonia, não havia ali nenhuma gota de excessos, nada absolutamente nada, faltava. Uma graça que talvez merecesse alguma devoção religiosa, e que, logo percebi, exerceria um peso sobre meus ombros que seria difícil de ser suportado. Suspirei fundo e quando levantei a cabeça, meus olhos se cruzaram com os de Cunningham, que pela primeira vez em mais de dois anos de convivência, sorriu para mim. A palestra de Waterfall terminou e o chefe de família aproximou-se para agradecer pela gentileza. A moça permaneceu à distância, escondendo seus poderosos olhos como se fossem pedras preciosas. Mas ela precisou ceder ao pedido de seu pai para que se aproximasse, Waterfall aproveitou a deixa e me chamou. Eles conversaram em italiano por algum tempo, consegui entender que a família possuía um restaurante em Arezzo, cidade não muito distante de Lucca, e que nos convidavam para jantarmos lá quando pudéssemos. Então aproximei-me da moça, e com meu italiano incipiente, apresentei-me. Ela sorriu, tímida, uma alma que pareceu um oceano azul inundado por toda a vida que possa existir, e então pronunciou: A-les-san-dra, empurrando toda a graça e vida da pronúncia sobre a terceira sílaba.
Despedimo-nos e apertei sua mão, que me pareceu feita de uma substância com a consistência e o odor de pétalas de rosas. Cruzei olhares com a velha mulher, que deveria ser sua avó, ela sorriu, e acho que percebeu que meu mundo interior se movimentava, e parecia reclamar do pouco espaço que meu corpo oferecia. Waterfall cancelou a programação agendada para a tarde e marcamos encontro para jantarmos juntos. A refeição transcorreu em um silêncio quase absoluto, mas pontuada por estranhos sorrisos que desde nossa partida nunca estiveram presentes. Quando distraía-me com a sobremesa Waterfall me perguntou se eu conhecia os afrescos de Piero della Francesca, na Igreja de São Francisco. Desde que iniciáramos o Grand Tour, eu havia visitado tantas igrejas, museus, havia ouvido falar de tantos artistas, que não soube responder. Ele sorriu e disse que em nossa próxima parada visitaríamos esse monumento artístico, um dos tesouros do século 15. Então antevi uma de suas longas explicações, que normalmente se iniciam com o contexto histórico do período. Enganei-me, a única explicação que veio foi que a Igreja de São Francisco localizava-se na cidade de Arezzo.
Dessa vez foi Cunningham quem sorriu, consegui ver seus dentes, ou aquilo que sobrara deles, tocos amarelados entremeados por espaços vagos e outros dentes brancos que pareciam vigorosos como os de cavalos. Seu sorriso durou apenas o curto intervalo até que ele percebesse que eu prestava atenção em seus dentes. Depois voltou à expressão cotidiana que, só agora percebi, parece-se com a de um cavalo que sobrecarregado, parece cansado de si mesmo.
Na manhã seguinte acordamos cedo e partimos na direção de Arezzo, viajamos o dia inteiro, e no final da tarde, quando nos aproximávamos da cidade, o horizonte foi coberto por pinceladas alaranjadas que misturavam-se a outras, da cor lilás. Esse mundo mágico descia sobre campos cobertos por macieiras, que faziam com que o odor que se desprendia de suas frutas se misturasse com o ruído da carruagem, dando vida a uma das memórias mais ricas que jamais conheci. Quando entramos na cidade o azul escuro pesava seus tons sobre as outras cores. Não demoramos a encontrar um hotel, Cunningham como sempre escolheu dormir na carruagem em companhia dos cavalos. Waterfall havia anotado o endereço do restaurante de Alessandra, e nem precisei dizer que desejava jantar lá. Uma hora depois estávamos prontos para sair, Cunningham cozinhava algo em uma panela ao lado da carruagem, e não quis ir. Vi uma de suas mulheres de madeira deitadas no chão, mas essa, pela primeira vez, não havia sido destruída. Tinha as duas pernas, um corpo voluptuoso e um rosto que, se não for autossugestão, parecia tentar imitar o de Alessandra.
O restaurante estava lotado, mas assim que nos reconheceu o pai de Alessandra, preparou uma mesa. Escolhemos nossos pratos, e enquanto a comida não chegava, assistimos em silêncio àquilo que começava a se tornar familiar para mim, uma alegria viva e ruidosa que misturava vozes, cheiros, e sabores, tudo isso envolvido pelas vogais abertas pronunciadas como se elas estivessem ameaçadas de extinção, e fizessem tudo o que podem para aproveitar seus últimos instantes de vida. O espetáculo só perdeu a graça quando percebi que a única razão para que estivesse ali, ainda não mostrara. Meu sorriso desapareceu e comecei a enfileirar possibilidades, cada uma mais negativa que a outra. No final, a que me pareceu mais lógica foi a de que ela, apesar da pouca idade, poderia ser casada, e que sorrira para mim, assim como sorriria para qualquer pessoa. Imaginei seu pai apresentando a mim o genro, e esperando de mim o mesmo sorriso com o qual cumprimentei sua filha.
Mas instantes depois tudo derreteu, Alessandra trazia nossos pratos e um sorriso magnífico que era muito menos tímido do que aquele da primeira vez. O vestido, agora, deixava muito mais visível o contorno de seu corpo, o colo branco avançou sobre mim quando ela colocou o prato na mesa. Dei um grande gole de vinho e percebi o sorriso irônico de Waterfall, que desviou a cabeça para nada precisar dizer. Ela perguntou se precisávamos de mais alguma coisa. Fui atrevido, sabia que em situações como essa precisamos deixar a timidez e a etiqueta de lados: “Sim, preciso. Quero que sente-se aqui para conversarmos.” Suas faces levemente rosadas enrubesceram, seus olhos escuros brilharam ainda mais: “Eu preciso atender às outras mesas, mas quando o movimento diminuir venho me sentar com vocês.” Disse isso e antes de ir embora notei no canto de seus lábios um resto de sorriso que poderia significar muitas coisas. A mais evidente de todas era que ela havia pronunciado a palavra “vocês” apenas por educação.
A expectativa pelo encontro transformou aquela refeição, que por si só era deliciosa, em um paraíso gustativo. Todos ao meu redor pareciam cúmplices desse momento magnífico, mas a figura que mereceu minha mais alta adoração foi meu companheiro de viagem, sobre quem ao longo desses dois anos havia alternado sentimentos de toda ordem, mas que até então, no tocante a julgamentos positivos, nunca havia ido além de uma distante admiração intelectual. Waterfall foi imediatamente alçado a uma alma nobre e elevada que faria de tudo pelo progresso espiritual do semelhante. Brindamos a vários assuntos, e quando propus um brinde às mulheres, ele sorriu e pareceu querer me dizer algo. Deixei com que falasse, mas ele pareceu receoso, escorregava entre palavras procurando dizer algo, mas parecia que, como acontece com estrangeiros que não dominam bem um idioma, elas não eram suficientes para dizer o que realmente desejava.
Talvez não quisesse ser surpreendido com a chegada de Alessandra ou de algum familiar. Mesmo que as palavras não fossem suficientes, li em seus olhos parte do que ele tentava dizer, ali falava-se de cuidado, receio, em outras frases estava escrito que todas as emoções em que estava mergulhado, eram volúveis como as nuvens do céu, e que em pouco tempo o azul anil se transformaria em uma mar de chumbo. Não porque Alessandra fosse má, ou não possuísse as qualidades que eu imaginava, mas porque a natureza das coisas era mesmo essa. Se ele perdesse três horas com explicações eu não teria compreendido melhor o que tentava me dizer, mas, de qualquer forma, suas boas intenções eram completamente inúteis, nada teria a força de interromper meu caminho na direção de Alessandra, e me pareceu a um segundo olhar, que Waterfall, como homem inteligente que era, percebeu a inutilidade de qualquer tentativa de frear meu ímpeto. Neutralizou o próprio olhar e transformou suas palavras em um inodoro e fluente fluxo regado a brindes e alegrias passageiras.
Nossa piscina de felicidades rasas guardava, pelo menos para mim, uma promessa, que transformaria as águas em um oceano sem fundo, águas de uma natureza especial, pois nelas jamais alguém se afoga. Elas nunca são demais, saciam a sede, as dores, refrescam a pele, elas eram o prometido retorno de Alessandra, quando a maioria dos fregueses tivesse ido embora. Nesse instante sorri, a boca de Waterfall continuou propondo brindes e espalhando iniquidades espirituosas, mas eu mergulhei, até mesmo de Alessandra esqueci por alguns instantes: a promessa da volta daquela que representaria o fim das dores e o início de uma nova era, lembrou-me imediatamente os alicerces sobre os quais está erigida a civilização ocidental. Sem que me desse conta, algo em mim havia repetido o mito civilizacional no qual estamos mergulhados, e isso independente de crença religiosa, crença que, aliás, não possuía.
O pensamento seguinte, que fez manteve aceso o silêncio e fez nascer um segundo e discreto sorriso: foi sobre o oceano, vivemos dentro de um oceano, ao invés da água, uma substância invisível que, assim como faz a água nos reais oceanos, serve de substrato para todas as camadas de existência, e, de certa forma, amarra, em maior ou menor grau, todas elas umas às outras. Os deliciosos fios de macarrão molhados em um sangrento molho de tomates, são meus parentes, assim como qualquer uma das ideias do senhor corpulento da mesa ao lado, estão ligadas aos peixes que nadam escondidos no Lago Maggiore, ou os animais extintos transformados em pedra, e que jazem esquecidos dentro de montanhas.
Essa constatação me colocou em uma bifurcação, de um lado o calor do acolhimento de um universo que nunca abandonará qualquer de seus filhos. E onde a morte, não passa de um piscar de olhos sem importância, visto que tudo o que existe, prossegue sua existência utilizando-se de outro suporte. Do outro lado, o outro caminho que se oferece é escuro, e o homem, grande mandatário do mundo, não é mais do que outra sombra na penumbra chuvosa, cujos orgulhos porosos, acabam dissolvidos, deixando expostos nervos que gritam de dor a cada novo pingo de chuva.
O que também se dissolveu foi meu sorriso, quando percebi que não saberia qual dos caminhos deveria escolher, e nem ao menos se deveria escolher algum. Talvez as escolhas acabassem se fundindo, transformando os pontos altos de cada uma, em detalhes do caminho oposto. Aparentados oriundos de tantas misturas de gerações, que dissolvem os defeitos e qualidades mais agudos, formando uma civilização incapaz de genialidades e matanças.
Como não fiz minha escolha, o que aconteceu foi o que sempre ocorre em casos como esse, a bifurcação desiste de existir, desaparece, para talvez voltar a aparecer mais para frente, inquirindo outra questão, simbolizada de maneira diversa. Waterfall sorriu para encerrar o silêncio, comentei sobre como era bom aquele prato de comida, bebi um gole de vinho que me fez lembrar do oceano seco em que estamos imersos. Uma olhada para o lado é suficiente para perceber que nenhum dos frequentadores do restaurante estão cientes de que estão mergulhados nessa substância, todos despreocupados, vivendo o instante que enxergam à sua frente, desconhecendo olhos alheios e outras formas exóticas de participar do real. Uma dessa formas inundou minhas papilas gustativas, transformando sabores em memória, que logo se transmutou em desejo: somos máquinas sem descanso, produzíamos antes de nossos nascimentos e continuaremos produzindo quando o mármore de nossas tumbas derreterem pela ação dos séculos. E o pó marmóreo se transformará em substância que nutrirá a terra semeada por sementes, dela nascerá árvore que alimentará aquele que contempla o horizonte enquanto dúvidas escavam sua alma.
“Vejo que está pensativo, esses sorrisos de canto de lábios…”
“Ideias em ebulição… nada concreto…”
“Sinto no ar o enxofre, a erupção não está longe.”
Alessandra puxa uma cadeira e senta-se ao meu lado. Waterfall abre um sorriso: “bem que avisei.” Ela pergunta sobre o que era o aviso e ele desconversa.
Demoro para recobrar a atenção por causa de sua chegada inesperada, e só consigo organizar meus pensamentos após um longo gole de vinho. Mas nada é tão simples quanto imaginava, meus batimentos cardíacos se aceleram, e as palavras lutam com dificuldade para sair de minha boca, e quando conseguem são como desajeitados adolescentes prontos para esbarrarem em cristais valiosos.
Recorri ao remédio avermelhado de minha taça, e ele fez efeito, as palavras começaram a fluir, percebi o sorriso complacente de Waterfall, que ainda permaneceu na mesa por alguns minutos antes de arrumar uma desculpa para se ausentar. No dia seguinte havíamos combinado de visitar os afrescos de Piero Della Francesca, na Igreja São Francisco, mas ao contrário do que costumava fazer ele não estabeleceu horários, apenas despediu-se e caminhou lentamente na direção do hotel. Ainda pude ver um resto de sua expressão facial, que me pareceu um sorriso com pitadas de desdém, que talvez pudesse ser resumido em uma frase parecida com essa: “O inevitável está de volta, que seja bem-vindo”.
Após essa última reflexão, mergulhei em outro mundo, que era feito de vinho e Alessandra, um oceano colorido e exclusivo, que ao contrário daquele outro que havia imaginado, não permitia a integração com mais nada. Meu italiano primário poderia impor muitas barreiras à nossa comunicação, mas elas foram todas destruídas por seus olhos, nos quais me enxergava refletido, confirmando que estava realmente ali, um ente que naquele instante existia e exercia sua existência, cravado como um prego entre duas eternidades temporais. E ela era minha cúmplice nesse ato grandioso, eu talvez fosse o espelho em que ela se enxergava refletida, e então senti que formávamos um rio, correndo na mesma direção, e carregando consigo toda a vida que a água consegue suportar.
Os poucos fregueses que restavam foram embora e seu pai veio à mesa despedir-se. Ficamos sozinhos no restaurante. O vinho de nossa mesa acabou. Mas ele já não era necessário. Nada, de fato, poderia ser adicionado ou retirado daquele cenário. O tempo, há muito, havia ido embora. Flutuamos em um presente cheio de espelhos e de nós mesmos que, finalmente, éramos um. Entre vapores e espasmos, entre sons primitivos e regozijos, entre olhos fechados e espelhos vazios, a alma se acalmou e voltou a ser duas. Almas que habitavam corpos saciados estendidos no chão do restaurante. O tempo, que havia partido, resolveu voltar, flutuei em um estado intermediário entre sono e vigília, e tanto de olhos abertos quanto fechados, só o que via era o corpo adormecido de Alessandra. A vida manifesta em seu maior esplendor. A pele que parecia feita de cerâmica e que seria invariavelmente atravessada pelas garras peçonhentas do tempo. Mas isso não tinha a menor importância, pois o instante único em que vivia ainda era uma montanha de músculos, enquanto o tempo apenas um recém-nascido que parecia frágil como tudo aquilo que ainda destruirá.
Percebi que a noite dava os primeiros sinais de fraqueza, na dúvida sobre como deveria acordá-la, deixei-a dormindo. A caminhada até o hotel, não foi feita por um homem, mas por um deus que acaba de se estabelecer nesse planeta. Nessas poucas horas que me separavam da chegada ao restaurante, ganhei certezas, perdi medos, minha passadas firmes não conheciam o cansaço de uma noite mal dormida, meus olhos ansiavam pelo brilho do sol, desejavam desafiá-lo, apostando que nenhuma lágrima seria derramada. Encontrei um riacho onde lavei o rosto e bebi água, a noite moribunda molhava de prateado as águas, a lua cheia parecia cansada, havia cumprido sua missão e agora pedia licença para ir embora. Eu era o sol, pronto para iluminar o mundo. Vi um peixe alaranjado que veio à tona em busca de comida, aquilo talvez fosse um símbolo, uma nova bifurcação, a vida pedindo para ser vivida na plenitude.
As águas doces receberam o sal de minhas lágrimas, o peixe desapareceu, e em seu lugar a prata se transformou em um tímido dourado, que imagino, envolvia tudo aquilo que me envolvia. Afogo-me em um oceano de ouro. Caminho para o hotel, além de uma sensação de poder que jamais conheci, há ou havia outro sentimento estranho, não sabia se vivia aquele instante, ou se ele fazia parte de uma memória, a fronteira entre passado e presente assemelhava-se àquela entre sono e vigília, certezas desaparecidas e uma suspeita de que poderia ainda haver uma parte do que vivia, que talvez ainda não tivesse acontecido, fatias de futuro caindo dos céus como pedaços gigantes de maçãs. Desviei delas, pois se havia na vida uma época em que precisava vivenciar cada gota de presente, era aquele em que vivia.
Ao lado de nossa carruagem, onde Cunningham ainda dormia, estavam sentadas duas de suas esculturas, ambas intocadas, em uma delas reconheci de maneira mais clara os traços de Alessandra. Pedi café e decidi que o sono era menos importante do que aqueles momentos que vivia, e que de agora em diante dividiriam minha vida em antes e depois. Pouco depois Waterfall chegou acompanhado por um sorriso que não costumava frequentar seus lábios naquele horário. Disse que poderiam deixar a visita à Igreja de São Francisco para depois do almoço, e que eu poderia descansar pela manhã. Minha mente flutuava entre várias altitudes, e apesar de não estar com muita vontade de visitar a igreja, queria ainda menos descansar no hotel. Ele concordou e me olhou fundo nos olhos sem nada dizer, entendi que caberia a mim contar o acontecido, aconselhar-me, molhá-lo com minha felicidade.
Por pouco não aceitei o convite, permaneci calado, engolindo palavras luminosas e coloridas que lutavam para sair de minha boca. Cunningham também mostrava os espaços vagos entre os dentes, e me presenteou com aquele entalhe que mais parecia com Alessandra. Flutuamos até a igreja que aquela hora estava praticamente vazia. Waterfall iniciou sua palestra falando do livro De prospectiva pingendi, escrito pelo artista que decorava com seus afrescos a igreja, Piero della Francesca. Segundo ele, aquele era um ensaio sobre como a pintura era secretamente comandada por formas matemáticas, o triângulo, o cone, o círculo. Então apontou algumas marcas deixadas pelo autor antes de passar à pintura propriamente dita, e que davam pistas dessa devoção do artista aos números, e suas consequências formais.
Enquanto ele fazia com que descobrisse entre as figuras pequenos pontos que sinalizavam um triângulo ou um cone, meus olhos eram inundados por uma cor que fundia-se com luz e que emprestava às figuras religiosas, e às cenas bíblicas, uma dignidade que desconhecia em qualquer outra obra de arte. Os afrescos eram grandiosos, mas o eram justamente por não tentarem ser, e era a cor e a luz, muito mais do que as formas, o que os faziam assim. Naquele que era nomeado como Procissão da Rainha de Sabá, as cores opostas aproximavam-se, as oliveiras envolviam a cena, o mundo era encoberto por nuvens e o espaço vago entre elas se assemelhava a uma bailarina dançando nos céus. Sim, a matemática estava ali, construindo uma composição que se aproximava da perfeição, mas ela lutava com as cores e a luz, que pareciam não caber no suporte escolhido, e transbordavam, sem no entanto, extrair a humanidade de cada um daqueles rostos. Waterfall carregava uma cópia de De prospectiva pingendi, e fez questão de ler uma frase de Piero della Francesca: “O intelecto não percebe nem compreende suas partes senão como uma mancha vista a grande distância, que não sabe julgar se é homem ou outro animal.”. Pedi para que ele lesse novamente a frase, então me pus a refletir. Ele pareceu entender minha necessidade de introspecção e disse que eu poderia ficar livre para admirar os afrescos, e que continuaria com sua palestra depois. Agradeci. Era apenas tranquilidade o que necessitava para deglutir o que havia visto e ouvido até ali.
Piero, como qualquer artista verdadeiro, ou, em última instância, como qualquer ser humano que busca com honestidade, um sentido para a vida, sentia-se ao mesmo tempo, oprimido e participante de forças que se opunham, havia a matemática, soberana, a razão por detrás de tudo, o esqueleto do mundo, mas havia a luz, que separava o homem das trevas, que revelava as belezas, que retirava o véu que encobre o humano. O embate não era direto, as coisas poderiam, com sabedoria, serem encaixadas, mas essa não era uma tarefa fácil, era a batalha de uma vida inteira, e sempre sobraria na boca o gosto de que havia-se exagerado em um dos ingredientes, e se esquecido de outro “que não sabe julgar se é homem ou outro animal”. Eis o destino implacável exercendo-se sobre o gênio renascentista, a mancha sem origem ou definição, que também pesa sobre os ombros do homem comum, vagando entre desejos volúveis que se desfazem sem deixar traços, e cujas únicas marcas de existência são as rugas ao redor da boca, ali está escrito um poema que mistura desdém, inveja e lamentações, mas que também grita perguntas que não nasceram para serem respondidas.
Nós somos todos eles, e eles nos veem refletidos quando olham no espelho. Na parte central da igreja há a imagem de uma Virgem Maria de tamanho desproporcional, vestindo um traje vermelho, e que envolve com seu manto várias figuras humanas cujas cabeças não vão muito além da altura de seus joelhos. Não estaria ali a matemática? A altura da Virgem, três vezes maior do que a dos humanos, a simbologia dos números, a trindade caminhando na direção da unidade, da perfeição. Mas uma Virgem carnal, vermelha, um grito do artista, uma afirmação: é desse material perecível de que sou feito, posso submetê-lo a meus desejos, esticá-lo, forçá-lo a seu limite maior, mas inevitavelmente, em algum ponto ele se romperá. Não haverá eternidade, e tudo o que foi produzido, sonhado e desejado, acabará se confundindo em uma mancha, que ninguém pode dizer se se trata de um homem ou de outro animal.
As cores e luzes dos afrescos se confrontavam com a iluminação quase inexistente da igreja, que parecia lamentar o dia ensolarado que havia do lado de fora. E elas, as cores, eram o grito de Piero, por vida, por luz, por eternidade. A dignidade estampada em cada uma daquelas figuras parecia querer igualar todos, não como membros de uma sociedade justa, mas como humanos sujeitos às mesmas graças e desgraças. Homens e mulheres dignos não precisam procurar nada nos espelhos além daquilo que é essencial.
Toda a simbologia cristã descrita com os afrescos, não passava da camada mais superficial daquela obra de arte. O mito humano poderia ser compreendido por olhos muçulmanos ou ateus, e ele dizia: somos incompletos, e por mais que lutemos para modificar essa condição, o que estaremos fazendo é apenas construirmos nossas próprias miragens, o que poderá temporariamente aliviar o peso que nos verga a alma e enche o peito de angústia. Mas a condenação é absoluta e não admite apelação.
Waterfall prosseguiu com sua palestra, mas que consistia basicamente em reafirmar as ideias matemáticas do livro de Piero, e demonstrar como aquela obra prima era fruto, antes de tudo, de um pensamento racional. Pensei em aproveitar a onda de sorrisos fáceis que o episódio com Alessandra proporcionou a ele, e expor meu ponto de vista. Desisti, não porque duvidasse de minhas ideias, ou da capacidade de debater, mas porque queria prolongar aqueles sorrisos, que imaginava, fossem espécimes raros em suas últimas décadas de vida. Engoli minhas opiniões e quando terminou sua palestra retribui com um sorriso. Então, enquanto almoçávamos no hotel, ele me perguntou quantos dias eu desejaria permanecer em Arezzo. Normalmente, segundo ele, partiríamos no dia seguinte, mas: “Nada na vida é exato, e afinal de contas aquela viagem acontecia para meu desenvolvimento. Talvez você queira escreveu para tua família, dizer que precisa ficar mais uns dias e…”
Interrompi-o. No curto instante que transcorreu antes que pronunciasse qualquer palavra, algo moveu-se em mim de maneira violenta, não sei explicar se as reflexões na Igreja de São Francisco tiveram influência no que aconteceu em seguida, mas quando respondi, nenhuma dúvida pairava em meu coração:
“Iremos embora amanhã, como planejado.”
Waterfall pareceu desconcertado, e levou alguns minutos para romper o silêncio.
“Tem certeza? Não quer esperar mais um dia para as ideias assentarem, a moça do restaurante, você parecia tão…”
“Tudo muda, o tempo todo, avise Cunningham para preparar a carruagem para amanhã cedo.”
As horas seguintes pareceram confirmar minhas palavras, tudo mudara, os sorrisos desapareceram, o cocheiro voltou a esconder seus dentes estragados atrás das gengivas, e o número de palavras pronunciadas voltou a cair. Tudo voltara a ser como antes, provando que as mudanças são como pés indecisos que ás vezes avançam dois passos para retornarem três. A tarde foi livre e vaguei ao redor do hotel, sem rumo, temendo que o arrependimento me flechasse e tivesse de pedir para que ficássemos em Arezzo mais um dia, um mês, uma vida. Mas nada aconteceu, a tarde quente fez com que eu suasse a bicas, e cada gota que de mim escorreu me pareceu um desperdício, a cidade, e cada pessoa que via também não passavam de desperdícios, cada um deles embalado de uma maneira diferente. Mas eu não estava triste, arrependido, sentia-me como alguém que havia descoberto seus limites e precisa se conformar com eles.
À noite, Waterfall bateu na porta de meu quarto e perguntou se não queria jantar no restaurante de minha amiga para nos despedirmos. Antes de respondê-lo, percebi que se de fato estivesse muito certo de minha decisão, não me incomodaria em despedir-me, poderia inventar que retornaria em duas semanas ou algo do gênero. Disse-lhe que preferia jantar no hotel. Quando fechou a porta sem me responder, notei que parecia irritado, e que esse sentimento havia aumentado a tonalidade amarelada de sua pele.
Guido Viaro é um escritor, cineasta, administrador cultural e palestrante nascido em Curitiba em 1968. É autor de 22 romances dentre eles o livro O Cubo Mágico, premiado com o primeiro lugar na categoria romance no Concurso Biblioteca Digital 2020, da Biblioteca Pública do Paraná. É também autor do ensaio filosófico O Labirinto Espelhado e de quatro filmes entre ficção e documentários. Desde 2009 administra o Museu Guido Viaro, entidade cultural que tem por missão divulgar e preservar a obra de seu avô, o pintor italiano Guido Viaro. No museu as atividades artísticas não se atém à pintura, mas englobam música, cinema, literatura e teatro.
