Coluna Guido Viaro: O Quadrado/Capítulo 4

Ilustração: Olga Voscanelli


Três quilos cada, é o que ganharam com o regime de engorda. Em harmonia decidiram, pelo menos temporariamente, encerrá-lo. A medida em que o dia da primeira aventura se aproximava, o dinheiro minguava, aquele seria um único tiro, e precisariam acertar no alvo. Hildebrand escondia da esposa quanto dinheiro lhes sobrara, mas ela sabia que era pouco, e a possibilidade de não receber nada dos seguidores e mergulhar na mais profunda miséria, assombrou democraticamente os sonhos de ambos. Talvez conseguissem alguma coisa pelos equipamentos de vídeo, celulares, mas isso só adiaria em alguns dias a miséria.

Cada um tecia em silêncio um plano alternativo em caso de fracasso, nenhum deles incluía o parceiro nessa opção. Mas ambos acreditavam na possibilidade de sucesso, Liotta, que havia sido contaminada por um entusiasmo que já perdera o viço, tinha mais fé do que o autor do projeto. Na véspera do grande dia os seguidores atingiram a marca de 3000, eles decidiram se concentrar e, por enquanto, ignorar os comentários.

Na manhã da aventura, acordaram tarde, arrumaram as coisas, e se despediram do porteiro, que estranhou o incômodo tapete redondo e perguntou o que fariam com aquilo. Hildebrand viu-se forçado a contar toda a história, o que primeiro arrancou uma gargalhada do homem, que achou que estivessem brincando. Quando percebeu que falavam sério, retratou-se, utilizando a técnica de imobilizar todos os músculos da face, então sacou de seu celular e transformou-se em mais um dos seguidores.  
                
Na Estação de metrô Chetellet Les Halles pegaram o trem para Saint-Germain-En-Laye, meia hora depois desembarcavam na charmosa cidade da periferia parisiense, mas a aventura não terminava ali, precisavam se deslocar ainda uns seis quilômetros até um campo que costumava ser usado para plantação de beterrabas e agora vazio, esperava a próxima plantação com sua terra escura, que à noite, pareceria no vídeo um imenso vazio, uma plantação de almas envolvidas pelo mais retumbante nada, e também pelo frio, que segundo as previsões, atingiria a marca de seis graus positivos naquela noite. Nada mal para começarem.                                          
Hildebrand queria chegar ao local bem antes de entrarem ao vivo, precisavam se preparar, como essa seria a primeira experiência, escrevera algumas palavras introdutórias que ainda não sabia se utilizaria, ou então improvisaria algo para tornar tudo mais espontâneo. Decidiram chamar um UBER para ir até o local, assim que o motorista chegou começaram a carregar os equipamentos e as bagagens, deixando por último o tapete que por não poder ser dobrado, deveria ser amarrado ao teto do carro. Assim que o motorista percebeu o que desejavam fazer, disse que ou dobravam o tapete, ou não poderia levá-los, pois além de ilegal esse transporte riscaria sua pintura. Hildebrand pensou em contra argumentar, oferecer uma lona para proteger o carro. Apenas retirou tudo que havia colocado, e na hora de fechar a porta, a bateu com a maior força que pode. O motorista, revoltado, cuspiu-lhe no rosto, e se não fosse empurrado por Liotta, teria agredido seu marido.   
                                                                                              
O carro saiu cantando pneus e Hildebrand esperou pelas palavras de reprimenda dela, mas elas não vieram. Ela chamou outro carro e assim que ele chegou, a primeira coisa que fez foi informá-lo sobre o tapete. O motorista, um jovem imigrante magrebino, respondeu com um sorriso e colocou o tapete sobre seu carro, amarrou-o bem e o carro seguiu até o terreno abandonado. Quando chegaram, Hildebrand fez questão de pagá-lo um valor maior do que o da corrida, e até teve paciência de responder várias perguntas sobre porque queriam ficar ali, no meio do nada. O carro partiu e eles ficaram ali, sozinhos, com seus poucos pertences e algumas esperanças.    
                                                                                                       
Um sorriso estranho nasceu no rosto de Liotta, nele havia algo de infantil, um daqueles sorrisos que raramente acontecem depois de adulto. Isso acontecia enquanto ela olhava para o celular. Ele desconfiou, ali poderia haver algo que não o incluísse. Algumas desculpas e estaria sozinho em sua empreitada, o que representaria o fim dela. 
 
“O que foi, aconteceu alguma coisa?”                                                 
“Sim, aconteceu.”    
                                                                                     
Seu peito encheu-se de angústia e seus olhos foram avisados para ficarem de prontidão caso lágrimas precisassem ser fabricadas. Ela o abraçou e mostrou a tela do celular. Os seguidores, que quando saíram de Paris, há pouco mais de uma hora, eram 3000, haviam quase dobrado em número, agora eram 5800. Festejaram o acontecimentos com beijos e Hildebrand, sem que ela percebesse, deixou escapar duas lágrimas, elas continham alegria, mas não eram puras, carregavam também altas doses de medo. 
                                                                                                     
Decidiram que, antes do horário marcado para iniciarem a transmissão, 22 horas, entrariam ao vivo quando ainda houvesse luz solar, a intenção era apresentar-se, mostrar o terreno, os equipamentos de sobrevivência, e com isso angariar ainda mais seguidores. A primeira imagem transmitida pelo canal foi o escuro da terra vazia, onde eventualmente encontravam-se algumas raízes secas da última plantação. Então, com voz claudicante, Hildebrand apresentou o casal, em seguida descreveu o canal, mostrou a previsão do tempo para aquela noite, e o leve equipamento que utilizariam para suportar o frio. Três mantas finas costuradas, além das roupas que vestiam, casacos simples, luvas, e gorros, mas principalmente, o mais importante, o calor do corpo do parceiro.   
           
Liotta, que observava em um tablete a interação dos seguidores, parecia tentar informá-lo com sinais de mãos quando o assunto que abordava agradava mais ao público. Assim que encerrou a transmissão, que não durou mais do que três minutos, Liotta não conseguiu conter o sorriso.   
              
“Nesses minutinhos, três doações, uma de 10 e duas de 20 euros. Acredita nisso?”
                                                                                                          
Hildebrand caminhou na direção oposta a ela, precisava de um momento só seu, mergulhar sua felicidade provisória no escuro daqueles campos vazios. O quadrado, era isso, havia descoberto como encaixá-lo. Não para resolver os problemas do universo, sanar as dores do mundo, mas pelo menos para iluminar seu próprio caminho. Desconhecia sua fórmula, significado, e sentido último, mas isso não fazia falta, talvez essas descobertas estivessem vetadas ao gênero humano, e homens e mulheres precisassem se contentar com essas pequenas conquistas. Com a ponta do indicador desenhou um quadrado na terra escura, aquele era seu reconhecimento, mas também um marco transitório que erigia a si mesmo. Sem sua sensibilidade, jamais haveria notado o significado latente do que o menino do Jardim de Luxemburgo desenhara na areia do parque.   
                 
Interrompeu as reflexões, pois a prática gritava, aquele era seu momento e precisava agir. Verificou se todos os equipamentos estavam funcionando perfeitamente, se as baterias estavam carregadas. Escolheu o lugar menos úmido para estender o tapete, armou dois tripés, um para uma pequena filmadora e outro para um celular, além disso haveria outro celular que ficaria na mão de um deles, e todos os equipamentos estariam conectados à internet. Com o tablete verificariam as interações dos seguidores e descobririam eventuais doações.  
                                                       
Em um primeiro ensaio, entrelaçaram as pernas e ficaram na exata posição em que permaneceriam durante toda a noite, e que apesar de não ser muito confortável, ainda tornava possível que um dos dois conseguisse dormir. Sim, porque o que havia sido combinado era que sempre haveria alguém acordado para monitorar a transmissão e resolver os pequenos problemas técnicos. 
                                                                                             
Quando entrassem no ar, a noite já estaria escura e antes de ocuparem o abrigo, dirigiriam algumas palavras aos seguidores iluminados apenas por uma lâmpada também posicionada em um tripé, além das lâmpadas de cabeça que ambos mantinham presas à testa com uma tiara elástica. Quinze minutos antes das dez horas se deram as mãos e permaneceram em silêncio até o horário combinado para o início da transmissão. O momento de intimidade varreu para dentro de ambos uma substância estranhamente parecida.
                                                                        
Os dois estavam prestes a compartilhar com desconhecidos do mundo inteiro grande parte de suas intimidades. E isso os deixava desconfortável. Mas a questão era mais profunda. Nenhum deles tinha mesmo certeza de se queria compartilhar sua intimidade até mesmo com o parceiro de vida. Quem era aquela pessoa a quem a correnteza o unira? E qual a legitimidade dessa união? Que papel nessa determinação coube ao acaso, e existiu algum outro papel que foi exercido por forças menos aleatórias, e com um propósito definido? Era tudo tão vago e vasto, o sentido que perseguiam era uma estrela cadente, rápida e distante demais para ser aprisionada. O que sobrava era o sorriso amarelo da desilusão, uma cor que poderia ser espremida e, com sorte, de seu sumo extrair-se alguma poesia.   
                                                                                                        
Mas o que pairava entre eles era ainda mais profundo, atravessava a união e chegava ao Ser. Nenhum dos dois se sentia à vontade com o próprio Ser. As dúvidas eram tantas e tinham pesos e cores diferentes, que nenhum dos dois Seres reconhecia a própria imagem, sabiam que aquilo que brota sobre a casca original do Ser, os acessórios psicológicos, sociais e de várias outras ordens, havia construído a imagem com que se reconheciam. Mas eles não eram aqueles. Eram, e todos são, confusões misturadas, divididas em pequenas bonecas Babuska, que dentro de si carrega uma outra, idêntica, mas de tamanho ligeiramente menor. Uma mentira confusa que tenta erguer-se, levantar suas imperfeições, combatendo a força da gravidade, e dessa forma erigindo o que de mais transitório, duvidoso e magnífico, já brotou sobre a crosta do planeta.   
                  
A lâmpada vermelha se acendeu. Estavam ao vivo para quase sete mil pessoas espalhadas pelo mundo inteiro. Hildebrand vacilava, as palavras custavam a sair, e quando nasciam pareciam parentes distantes que não possuem intimidade com seus pares. Liotta, percebendo isso, assumiu a narração, mostrou a escuridão, falou um pouco sobre o projeto, cumprimentou os seguidores. Então pegou o marido pela mão e instalaram-se, enrolando as mantas sobre o corpo, mas deixando os braços livres para manipular os celulares. Os comentários escorriam pelo canto direito da tela em uma velocidade que dificultava a leitura. Mas ela conseguiu identificar algumas saudações amistosas, outras ofensas grosseiras, e até mesmo a primeira doação: 12 euros.   
                                                                                   
Ela logo percebeu que a missão a que se propuseram seria muito mais difícil do que apenas suportar o frio, precisava interagir com os seguidores, inventar conteúdo, isso sem se repetir muito, manter a chama acesa durante o vendaval, caso contrário seguidores e doações desapareceriam. E isso deveria acontecer enquanto a transmissão estivesse no ar, se fossem oito horas, cada um deles deveria falar ininterruptamente durante quatro. Ela fez sinal com as mãos, e Hildebrand tomou seu lugar, ainda desconfortável com as palavras, mas dessa vez fazendo com que elas fluíssem com mais certeza.  
                                                                                      
Depois de cinco minutos discorrendo sobre como se dá a perda de calor do corpo humano, e quais as principais técnicas para evitar isso, ele percebeu o sinal de Liotta indicando que o número de pessoas on line, estava diminuindo. Ela então tomou a palavra:  
                                                      
“Essa é nossa aventura, compartilhem conosco a de vocês. Sou albanesa, de família pobre, ainda adolescente imigrei para Itália em um navio tão cheio de gente que quase afundou. Vaguei pelo sul do país, naqueles dias minha ambição era não passar fome, para isso a única saída foi a prostituição. Foram anos de bordel em Bari, Pescara e depois Nápoles. Uma vida que parecia a tela de um mau pintor, derramamento excessivo de cores, linhas mal traçadas, composições sem harmonia. Um dia disse que se quisesse continuar vivendo precisaria abandonar a prostituição. Durante duas semanas me alimentei somente do que encontrei em latas de lixo. Depois a desgraça começou a fraquejar, um pequeno emprego de vendedora aqui, um bico de faxineira acolá. Em Milão consegui emprego no La Scalla, limpava o teatro e assistia aos ensaios das óperas. Coletei muitos autógrafos, tirei algumas fotos com estrelas. Envolvi-me com um cenógrafo, era casado e me prometia divorciar-se e assumir o amor que me confessava. Engravidei, ele se afastou, me mandava algum dinheiro. A criança nasceu com paralisia cerebral. Ele me enviou uma carta, não poderia assumir a criança, para compensar depositara uma soma razoável em minha conta.                                                            
Pensei em me atirar do alto do teatro acompanhada de minha filha, esborrachar-me perto da Catedral de Milão com uma carta em mãos, revelando ao mundo o que havia acontecido e quem era aquele homem que tentava me comprar. Só não pulei quando percebi que o mundo não estava nem aí para meu ato, que na manhã seguinte tudo seria esquecido, e o grande beneficiário da tragédia seria justamente aquele que tentava prejudicar. Aceitei o dinheiro, os anos passaram e vaguei entre a Itália, a França e a Suíça, pequenos empregos em cidades apagadas, morando em quartos de pensão, habitações que duravam enquanto os vizinhos não reclamavam do barulho de minha filha. Uma vida dura e amarga, mas que pelo menos, e essa foi uma conquista minha, não estava envenenada por ódio. Esse peso deixei de carregar.                                                            
Em Mônaco consegui um emprego no cassino, virei uma daquelas mulheres que fingem ser apostadoras apenas para incentivar que outros apostadores gastem mais dinheiro. Foi quando conheci meu marido, Hildebrand. Depois de nosso casamento minha filha morreu, e ele gastou quase tudo o que tinha para dar a ela um enterro digno no Cemitério Pére Lachaise. Sou muito grata a ele por essa generosidade. Então um dia, depois de percebermos que nosso dinheiro estava acabando e que em pouco tempo nós dois precisaríamos revirar latas de lixo se quiséssemos comer, ele me veio com essa ideia que, a princípio, considerei uma das mais imbecis que já havia escutado.                                                                                 
Mas depois, examinando melhor, não é que seja algo inteligente, mas pelo menos é diferente, uma maneira de ganhar algum dinheiro, por isso peço que nos ajudem, depois daqui vamos a lugares muito mais frios, prometo a vocês que iremos sofrer bastante…”   
                                                 
Hildebrand a interrompeu, seu discurso havia aumentado bastante o número de seguidores on line, as doações não paravam de chegar, ele temia que ela mergulhasse em um poço de auto piedade, o que diminuiria a interação dos seguidores. Depois de confessar a desconhecidos tudo o que lhe escondera, foi difícil para ele manter o sorriso intacto. Mas ele conseguiu.    
                                                                                                         
“Garanto que todos nós temos momentos difíceis, e esse depoimento de minha esposa foi muito importante para que nos apresentemos. Também para que vocês saibam como nasceu a ideia desse canal. Poderia aqui contar as mazelas de minha vida, mas garanto que são bem menos interessantes do que as dela.”    
                                                                                
Liotta, com o tablete na mão, sinaliza que o número de seguidores começou a diminuir. Hildebrand permanece alguns segundos em silêncio pensando em que rumos vai tomar.    
                                                                      
“Enterramos a pequena ao lado de Balzac…”    
                        
Liotta, incomodada com a frase que escutara, assume novamente a palavra:
                                                                              
“Estamos aqui para celebrar a vida, esse curto intervalo entre duas eternidades escuras. Vejam esse céu, pontilhado por luzes minúsculas, mergulhado na imensidão do espaço, molhado no caldo do tempo sem fim. Percebam que no meio de tudo estamos nós, forçados a viver, carentes de respostas. Nós e nossas lágrimas, nossos gritos de desespero, nós os mentirosos, sempre inventando respostas pobres para perguntas ricas, justificando nossas misérias durante o dia, para que os sonhos prossigam, ralos e vazios…”    
                                                                                       
Hildebrand fez sinal de que a interação com os seguidores estava diminuindo, mas ela prosseguiu:   
                                                                
“… sou essa fraqueza, vendo meu ideal por moedas, esqueço o que estou fazendo e inicio o exato oposto. E vocês, não fazem o mesmo? Sim, somos todos preguiçosos e medrosos. Quando estava grávida, me perguntava: Por que colocar alguém no mundo se nem eu sei o que estou fazendo aqui? Mesmo assim levei a gravidez adiante. Felizmente quem nasceu não podia ser responsabilizada por nada…”     
                                                    
Hildebrand tirou o celular de suas mãos e entregou-lhe o tablete. Ela pensou em reagir, mas acabou engolindo o resto de seu discurso. Ele mostrou a temperatura que começava a baixar, as mantas costuradas, falou um pouco sobre o tapete redondo que os protegeria da perda de calor vinda do chão, e então pediu que os seguidores enviassem sugestões sobre onde deveriam ser os próximos desafios. Imediatamente dezenas de nomes começaram a aparecer do lado direito da tela. Mas as cidades e países vinham alternadas com xingamentos, elogios, doações, e pedidos para que ele desse a palavra a Liotta. Sem saber o que fazer ele leu algumas palavras: Suécia, Finlândia, Alaska, Sibéria.    
                                                 
“Vocês querem nos congelar mesmo.”                                                         

Então Hildebrand silenciou por alguns instantes, um longo comentário preenchia metade da tela, e parecia complementar o discurso de Liotta:  
                                                                                                                 
“A obrigação do Ser, quando se percebe vivo, é tentar revelar o mistério que o trouxe à tona. Retirar os véus invisíveis que encobrem a escuridão. A reprodução é o instante da desistência, cansado de não encontrar respostas, o Ser delega a outro, sua capacidade de continuar tentando…”                                                                                                  
Aquilo parecia interessante, e continuava por várias linhas, mas não podia se dar ao luxo de continuar lendo, além do mais parte do texto já havia sido engolida pelo fluxo de interações que continuava subindo:  
                        
“Bugou?”                                                                               
“Fale alguma coisa, imbecil”                                                                  
“O maluco tá chapado”                                                                          
“2 euros”                                                                                                
“Fiquem conosco porque até o final da transmissão anunciaremos qual será nossa próxima aventura gelada.” 
                                                                  
Liotta sinalizou que o número de seguidores havia se estabilizado, mas outra coisa chamou a atenção de Hildebrand, sua esposa chorava. Ele não permitiria que essas lágrimas chegassem até o público, por isso virou o corpo e aproximou-se dela andando para trás e a deixando fora de quadro. Com os dedos secou suas lágrimas, sentiu que ela ficara contrariada com sua atitude. O público nada percebeu, e nesse instante ele tomou uma decisão arriscada, entregou-lhe o celular e foi se instalar no lugar em que passariam a noite. Ela foi pega de surpresa, tinha os olhos ainda levemente avermelhados, e um nó na garganta que tanto lhe apertava, que teve medo que iria se transformar em imagem.  
                                                                        
Mas ninguém percebeu o redemoinho que destelhava sua alma, um vento vindo do nada, e que agora deveria estar soprando outros corações, mas que a deixara coletando destroços. Não tinha tempo para dores, a vida vazava pelos céus e se espalhava como o ar, então percorria cabos, ondas, e aterrissava nos corações ansiosos que pediam para que realizasse tarefas, passasse frio, fizesse sexo com Hildebrand, recebesse moedas digitais e saltasse como uma foca agradecida. 
                                                                       
“Velhos burros”                                                                                     
“Parabéns pela coragem, estamos com vocês”                                        
“Yakutsk, a cidade mais fria do mundo, em janeiro, que tal? Se fizerem isso, doaria um dólar”                                                                     
“Liotta, teu marido é tão feio, e parece tão vazio, você merece coisa melhor, querida”
                                                                                       
Ela reuniu todas suas forças para construir um sorriso que extrairia de qualquer ourives amador, um sorriso de desdém se alguém aparecesse em seu estabelecimento tentando vender um metal parecido com aquele sorriso. 
                                                                                                
“Agora, amigos e amigas de todo o mundo, vamos nos instalar em nosso ninho, a interação com vocês vai diminuir, a temperatura agora está em oito graus…”  
                                                                                                      
A medida em que se encaminhava para o local onde estava o tapete e os cobertores, ela conseguiu ler mais algumas participações dos seguidores. 
             
“Chama oito graus de frio? Covardes”                                                    
“Boa noite, um conselho, se ficar muito frio, vão para um hotel. Esse mundo digital te devora hoje e te esquece hoje mesmo, não vale a pena”                                                                                                      
“Coroa das coxas grossas, vem passar frio aqui comigo”                     
“0.50 euros”
                                                                                          
Ela entrou em silêncio no abrigo e colocou o celular no pequeno tripé previamente posicionado para enquadrar todo o tapete, e levemente iluminado por uma lâmpada. Hildebrand estava assustado, desviou olhares que poderiam germinar conversas, não queria milhares de testemunhas ouvindo suas incertezas, que eram plantas ávidas por se transformarem em acusações. Sentia-se enfraquecido, e não desejava gastar as poucas energias disponíveis com discussões. Talvez fosse melhor apenas fingir que tudo não passara de uma mentira para conquistar audiência. 
                                      
Como já era esperado, devido ao horário, o número de seguidores diminuíra, mas, aos poucos, ele percebeu outro fenômeno, agora a maioria dos seguidores on line, eram da América ou da Ásia, e o conteúdo dos comentários também se modificara, menos peso, ódio, e formalidades por parte dos americanos, mais respeito e reverência dos asiáticos. Muitas doações de pequenos valores vindas do Japão, elas vinham acompanhadas por emojis, duas mãos unidas em oração, um coração envolvido por um halo transparente. Ele encostou-se em sua esposa que, envolta nas mantas olhava para o céu, um oceano de nuvens escuras que pareciam estar ali para bloquear qualquer imagem da Via Láctea, as imagens e os pensamentos que elas despertam. A massa escura refletia qualquer pensamento de liberdade, destruía as curiosidades sobre o eterno e remetia qualquer um que a encarasse por mais tempo, ao cotidiano, ao mesquinho.   
                                  
Com medo de transbordamentos, ele desviou olhares, e, quando foi necessário, fechou os olhos. Abandonou o tablete de lado, como se tivesse sido flechado pelo sono, mas escutava e percebia cada um de seus movimentos, e só abriu os olhos quando percebeu que ela havia se levantado e se afastado alguns metros do tapete. Ergueu a cabeça e percebeu que ela falava para o celular. Da distância em que estava não conseguia escutar o que dizia, mas conseguia ler em seu tablete os comentários dos seguidores.
                                                                                
“Sei exatamente o que está sentindo, o barco, a tempestade, o mar, e os céus, duas grandes mandíbulas prontas para nos devorar”                        
“Sol e paz para você, de uma amiga na Índia”                                         
“Ele sabe sobre o africano?”    
                                                              
Hildebrand interrompeu a leitura. Poucos minutos depois ela veio para o abrigo, e disse que se quisesse ele poderia dormir um pouco que ela se ocuparia da transmissão. Ele fingiu concordar e fechou os olhos. Por baixo de suas pálpebras navegava em um mar de incertezas sobre uma substância escura e viscosa composta majoritariamente por ódio, parte desse líquido, ou algo que se assemelhava a ele, escorreu pelo canto de sua boca, mas conseguiu evitar que transbordasse pelos olhos.    
                             
Sentiu muito frio, enrolou-se no cobertor e só foi acordado pela luz do dia. Repreendeu Liotta por não o haver acordado. Ela disse que estava tudo bem, e que interagira muito com os seguidores durante a madrugada, que enviaram muitas doações. Então apanhou celular e começou um discurso de agradecimento aos seguidores por haver acompanhado essa primeira aventura. Passou a palavra para o marido, que deveria responder a pergunta que se multiplicava, quando e onde seria a próxima aventura.   Ele titubeou por meio minuto, sabia que do mês de maio em diante seriam raras as possibilidades de encontrar um frio maior do que aquele que experimentaram durante a noite no continente europeu, se quisessem precisariam viajar para o hemisfério sul, o que encareceria bastante a empreitada. Sabia também que não poderia fazer com que os seguidores esperassem até o próximo inverno, isso seria como desejar guardar a neve durante todo o verão em uma caixa de madeira. Precisava se apressar para sua decisão, Liotta sinalizava com o polegar para baixo, mostrando a queda no número de seguidores on line. Ele então foi incisivo: Tromso, na Noruega, daqui a uma semana. Lá conseguiriam uma temperatura razoavelmente menor do que a que experimentaram, talvez zero grau, ou um grau negativo, se tivessem sorte poderiam decorar o cenário com os últimos flocos de neve da estação. 

                                                                   

Guido Viaro é um escritor, cineasta, administrador cultural e palestrante nascido em Curitiba em 1968. É autor de 22 romances dentre eles o livro O Cubo Mágico, premiado com o primeiro lugar na categoria romance no Concurso Biblioteca Digital 2020, da Biblioteca Pública do Paraná. É também autor do ensaio filosófico O Labirinto Espelhado e de quatro filmes entre ficção e documentários. Desde 2009 administra o Museu Guido Viaro, entidade cultural que tem por missão divulgar e preservar a obra de seu avô, o pintor italiano Guido Viaro. No museu as atividades artísticas não se atém à pintura, mas englobam música, cinema, literatura e teatro.

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