Dentro do teu silêncio remendar a luz – Sândrio Cândido

 
 
 
“Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.” 

Eugénio de Andrade

“o amor nunca terminará”
I coríntios 13,8
I

Dentro do teu silencio remendar a luz,
minha mãe, senhora das chuvas,
escuta de longe as minhas preces.

Dá-me uma ideia do teu nome,
Quero invocá-lo!

Quando a noite me atravessar por inteiro
dá-me a ideia dos teus olhos,
aqueles nos quais existíamos
antes de ser paridos no tempo.

Foi o teu útero que me guardou
Desde o princípio dos séculos.

Dá-me uma ideia da tua voz,
nela alimente a minha língua.
Dá-me por último um balanço
Dependurado no teu riso!


II

Querida ciranda
te escrevo por dentro da saudade
estou aos poucos deixando-te

Já não recordo quando permanecias
ouvindo o riso das goiabas.

Onde estou te escuto.
A tua memória cisca o meu peito
a tua voz espanca os meus olhos.

Não sei sustentar o teu adeus!

Pelas paredes do meu ventre
alastra-se uma  seara de pregos
choro para coar o teu sorriso,
doem-me as gretas da memória!

Na falta que me fazes
bordo uma manta de chuvas,
nela costuro a tua ausência. 


III

Dependurado no teu riso balancei,
quando  nos monturos acendíamos círios
mãe dos lírios e das chuvas.

Abríamos casas dentro dos salmos
cantávamos de deus o nome soterrado.

Coávamos no coração o tempo
colhíamos evangelhos na voz das cigarras.

E tudo se fez tão inútil!

Minha mãe, senhora das chuvas,
olhai-me brincar de ser andorinha.

Abençoai os meus voos
acompanhai as minhas quedas.  

Dos meus passos os cipós
ajudai à cortar.

Peneirai nos meus olhos
o teu riso triste.


IV

Conheço os teus olhos entristecidos
pequena criança do peito mendigo

também um dia fui igual a ti
banhei nos córregos de  Minas
comi mangas contemplando o céu

imaginei  nas goiabas a casa
tentei entrar no silêncio de deus

também fui filho da paisagem
que hoje os teus olhos comem

também debrucei no horizonte
e beijei os brejos no evangelho

também me fiz andarilha
chupei  no silencio os orvalhos
madurei os olhos na ausência


V

Essa criança a lambuzar os dedos de manga
é a mesma sentado frente ao sacrário.

Senhora das chuvas, escutai-me outra vez,
perdoai-nos este século de monturos
o horizonte esfaqueado na música.

Dai-me outra vez a esperança
com ela descerei aos campos de minas
banharei no córrego
enxugarei os remendos antigos.

Senhora dos lírios, descei conosco,
baixai do teu silêncio, inclinai teus olhos.

Dentro de ti costurarei os remendos
juntarei  na margem os troncos apodrecidos
com eles construirei a jangada
em vigília esperarei  a travessia.


VI

Dentro da linguagem construir o ninho,
toda palavra é  barroca no silencio.

Sustentar o mundo pela linguagem:
eterna liturgia dos poetas.

Costurar na fala a ilusão.  
É de silêncio o destino do mundo,  
última sinfonia por tocar.

Minha ciranda; ficai comigo!   
Não dobres ainda a roupa
costurai mais tempo na tua vida
remendemos-te,
é possível?

Observai  comigo os arames estirados
comprai os fogos e senta-te aqui
celebremos de aparecida a festa.

Trazei a lenha para os biscoitos,
permanecei  comigo.


VII

A festa foi linda naquela tarde
dentro dos biscoitos flutuava o amor.

Ainda soa o repique dos sinos
no barco que trago dentro de mim.

Aqueles fogos partiram-me
rezei baixo para ouvir o maravilhado.

Senhora das chuvas, escutai-me!
Estendei as rodagens,
lá dançarei outras cirandas.

Outras enxurradas comerão o solo
e a bíblia de vagalumes iluminará
o peito triste de algum poeta.

Reze também, senhora dos lírios,
ouça na saudade o meu nome
já agora transfigurado.


VIII

Meu filho partiu antes de mim
deixou uma borboleta rasgando meu útero
um cardume de facas mordendo-me os olhos
um berço afogado balançando no meu riso.

À noite grito seu nome por dentro
viajo onde o silêncio é incapaz de abraçar-me
danço com ele uma ária despencada
finco seu tempo na saudade que me come.

Meu filho chupou dos meus olhos a candeia
tirou do meu corpo o trajeto da barca
fez-se foz para o meu rio.

Inventou-me um mar de monturos.
Chapéu de memórias tapando- me a chuva.

Meu filho partiu antes de mim
levou no seu bojo o meu tempo de existir!


IX

perdoa-me mãe ter morrido tão cedo
quando ainda escrevíamos o mesmo poema

perdoa-me as rosas não desabrochadas
os bueiros abertos no teu sorriso

perdoa-me a casa de saudades
que  deixei alicerçada  no teu coração

perdoa-me a falta de telhados
não tapar a  noite que em ti deixei 

perdoa-me senhora dos lírios
os rasgos que em ti não remendei

agora sou eu quem chovo em ti
deixei-te deserto o útero

ninguém saberá ler no teu corpo
o abraço escrito pela minha falta

nenhum poço acolherá as lágrimas
que a minha morte plantou em ti. 

perdoa-me mãe quebrar a tua música
e roubar os pássaros do teu riso.


X

Meu filho comeu devagar o tempo
deixou por consagrar uma eucaristia

ele rompeu um dique de borboletas
no outro lado do inacessível.


XI

Mãe:
escuta-me ? 

Dentro do teu silêncio, remendar a luz!

Na tua lágrima ainda chovo
plantamos estradas na saudade
algum dia virás a mim?  


XII

Meu filho morreu antes de ser tempo
no interior do silêncio capinei a dor
nasceu-me uma candeia de solidões
não pude acolher o eterno pretérito.

Meu filho se fez um sino dobrando
ficou no útero que levo lavrado
uma música de olhos amonturados 
um deserto que ainda me come.

Meu filho foi comido pela ausência
deixou nas noites uma canção mordida
erosou meus passos
estancou meu tempo na saudade.

Meu filho nasceu onde não o vejo
deixou em mim uma bíblia de lágrimas.
Folheio na noite seus cantares
tentando cavar para a dor um descanso.


XIII

Mãe:
Fraturei-te o tempo por existir
descosturei-te os evangelhos,
abri um brejo nos teus olhos cansados.

Vejo-te sentada no batente
descascando a dor nos crepúsculos.

Às vezes desço em um raio de sol
toco-te a pele, acarinho os teus cabelos,  
conjugo contigo a falta.

então chove
e choras.


XIV

Meu filhinho partiu cedo
deixou secar em meu corpo
as ramas do feijão.

Nunca mais soube cozinhar
depois de vê-lo partir.  

Guardei dentro  a janela
outrora aberta para as rosas.  

As formigas não voltaram
faziam-lhes falta escutar
a voz dele dizendo o universo.

Deixou costurar meu afeto
por um abraço impossível.  

Fez-se feroz a ciranda
comeu-me tudo aqui dentro.

Meu corpo acolheu monturos
no lugar onde ele  balançava.

Meu filhinho partiu cedo
levou consigo o meu barco.


XV

Ontem estávamos todas à mesa
havia biscoitos de fubá junto aos queijos
e o perfume da alegria crescia
por todas as grotas do corpo.

Hoje não estamos todos à mesa
há biscoitos de fubá juntos aos queijos
e o perfume da dor segue crescendo
por todos as grotas do corpo.

Não me rebentes a última corda.


XVI

Meu filho partiu cedo
sua morte apagou-me todas as coivaras
meu útero nunca mais cantou.

Em cada lugar do meu abraço
dói-me a ausência daquela voz dizendo:
a benção mãe!

Abriu-se em mim uma barroca sem fundo.

Meu filho se foi.
Queimaram-me todas as flautas,
um mar de brasas invadiu os meus olhos,
por isso choro!

Em cada palavra o silencio sangra,
não sei costurar para tapar essa dor.

Ficou as cinzas arrodeando meu coração
nasceu-me um dique de fraturas;  
nenhum poema é capaz de furá-lo!


XVII

O teu corpo diz-me!
Sou no teu nome um buraco
um cacto debruçado no teu colo
nos teus dedos uma viola fraturada.

Os teus abraços na noite se  estendem
como apanhadores de algodão
e  só a dor lhes espera.

Nenhum fruto, nenhuma semente.

E sei que afogo os teus olhos
quando a tua mão passeia pelo ventre,
tão vazio, tão inabitável!

Ter de morrer doeu em mim
moeu – me o  corpo, a morte.


XVIII

Quando a tua vida deixou de pertencer a este mundo- dobrei os olhos para dentro das lágrimas- anos depois choveu. nenhuma gota pode sarar em mim o deserto. nunca mais cresceram os jardins no meu útero-. De noite, quando deito, uma ciranda brota no meu ventre e outra vez os meus olhos se embrejam. Em algum lugar a tua mão se levanta, sustentando  a minha dor!


XIX

Quando olhar nos meus olhos
procure não ver o berço quebrado
essa criança morreu
e dói!

Feito casca de manga
atirada debaixo da porteira
escorregamos.

É tanto tempo para fincar
e nenhum para colher.

Essa criança deixou de ser
só o seu choro espanca meu útero.

Quando olhar nos meus olhos
procure não ver os sapatos de lã.

Não me desvista a dor,
ajuda-me a semear espelhos de riso
no interior do corpo.


XX

Meu filho deixou de existir no tempo
meu coração molhou-se lentamente.

Feito cansanção fiquei
Arderam meus olhos de tanta água.

Meu filho foi tocar nos pássaros
fez-se nuvem, fez-se estrela,
foi cantar do outro lado
fez-se chuva em um fim de tarde.

Ele pariu em mim a distância
buraco impossível de tapar.

Eu que te havia trazido
não soube mais navegar à noite.

Meu filho foi costurar em deus
cavar a casa na eternidade.

Fiquei gritando pelo seu nome
chupando no peito a dor da saudade.

Ele plantou em mim uma roseira
um galho torto habita-me.

É triste ouvir desde longe
a tua voz que não conheço.


XXI

A tua morte não morreu em mim,
ainda que dos teus cabelos
só reste uma vaga lembrança.

A tua morte acendeu nos meus olhos
a goiaba crepuscular,
dentro dela construo um oratório
onde ajoelho as lágrimas.  

alguém me diz a palavra eternidade
com tamanha certeza
como se fossem pingos d’água
beijando o centro das rosas

eu nada digo,
avisto de longe o pássaro cansado
levo no ventre o berço fraturado
no peito a palavra atracada.


XXII

Mãe
sei que desde que me fui
o teu ventre não deixou de dizer adeus

no teu riso se alastrou
uma roseira de lágrimas!


XXIII

não sei se existe um deus
mas sei que o meu filho morreu!


 Ilustrações: Pablo Picasso



Sândrio Cândido (Minas Novas, MG, 1991), estudante de teologia, professor, poeta, é autor de Epifania (Patuá, 2014). Teve poemas publicados em Revistas digitais como Mallarmagens, Germina, Zunai, Diversos afins, etc…  É Graduado em Filosofia e atualmente  reside em Cali/ Colômbia, onde também se dedica ao acompanhamento dos processos de diálogo e evangelização junto aos povos afrodescendentes.

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