Ele é amigo do papai, crônica de Malvina de Castro Rosa

Crédito imagem: pinterest.com

Quando eu era criança e comecei a ser alfabetizada, tinha como objetivo ler quatro autores que considerava essenciais. A primeira era Vovó, poeta desconhecida para a maioria, mas de fundamental importância pessoal. A segunda era Cecília Meireles, por causa da poesia Uma palmada bem dada. Ela me fazia entender, na educação old school, que às vezes eu até merecia umas lambadas. O terceiro era Quino, por um desafio lançado por meu pai. E o quarto era Luis Fernando Verissimo.
 
Luis Fernando era um grande amigo da família, mas um amigo completamente lacônico. Nada de mal-educado, não, só de poucas palavras. Eu compreendia que ele era um cara conhecido, que era um escritor importante que “até” escrevia no jornal, mas enquanto eu era analfabeta, não tinha a menor ideia do que passava na cabeça dele. Fato que me dava uma curiosidade danada! Será que aquele amigo do papai meio gordinho que se desenhava com traços muito bons era realmente uma pessoa interessante para além do “Oi! Como você vai?”? Todos diziam que ele era genial, mas quem me provava? Sou uma pessoa que trabalha com fatos, lido mal com boatos. Ainda que eu achasse muito pouco provável que a queridíssima e efusiva Lúcia fosse casada com um ignóbil e que os afetivos Fernanda, Mariana e Pedro tivessem um pai pífio, minha cabeça infantil precisava de dados, tudo era hipótese. Atenta à conversa dos adultos, procurava pela comprovação de sua genialidade. Até o momento em que eu consegui começar a decifrar as letras.
 
Não lembro bem qual foi a primeira coisa que li dele, provavelmente deve ter sido As cobras. Pegava o jornal e ficava fazendo um esforço para juntar as letras e ali começavam as aulas de ironia, sarcasmo e crítica por escrito.
 
Quando adentrei as crônicas propriamente ditas, descobri que a escrita trazia a possibilidade de superar a timidez, ser bem divertido e que o silêncio é necessário ao cronista para observar o mundo e as pessoas (ok, talvez não precisasse tanto silêncio, mas isso é de cada um).  Também foi nessa época que eu achei fantástico perceber que quando escrevíamos conseguíamos expor o pensamento com início, meio e fim sem ser interrompido. Assim comecei em todos os meus trabalhos escolares de produção textual a “imitar” o estilo “Luis Fernando Verissimo”. Não sei se era perceptível minha apropriação de estilo, mas ficava toda prosa quando era elogiada pelos professores.
 
Em 1991, quando ele lançou Pai não entende nada, fiz questão de pedir autógrafo e me exibir para as pessoas (e óbvio, de me gabar um pouco: “ele é amigo do papai”). Li o livro em uma sentada. Ri muito e entendi um pouco o meu próprio pai, compreendi que pai não entende nada mesmo. E assim ao longo dos anos, fui tomando minhas aulas, que ele nem sabia que me dava dia a dia, tentando aprender como representar esse mundo tão doido, quase distópico, de forma um pouco mais cômica, porque dar certo ar de ridículo ao que nos apavora torna mais fácil encarar a vida.
 
Nesse sábado, 30 de agosto de 2025, ele se foi aos 88 anos, e se o “O futuro era melhor antigamente”, agora, Luis Fernando, pensa, que difícil um futuro sem você!? Ok, talvez você não fosse egocêntrico o suficiente para ter essa noção, mas para nossa sorte, por escrito, as pessoas são eternizadas. Obrigada por todas as aulas de escrita que você nem sabe que deu! Sigamos a luta de retratar a sociedade sobre seus ângulos mais feios de forma mais leve! Você é uma escola!

Malvina de Castro Rosa é de Porto Alegre. Escritora, relações públicas e mestra em design estratégico, publicou os livros As loucas aventuras da guria maluca (crônicas, 2013), Paralelos Cruzados (2021), seu primeiro romance, e Crônicas de um fim do mundo antecipado (2023), no qual reúne crônicas do blog semanal que mantém há mais de quatro anos, www.bomdiasociedademachista.blogspot.com. Em 2024, lançou a coletânea de contos Em nós. Atualmente, é editora assistente na Caravana Grupo Editorial, no Brasil, e editora-chefe da Caburé, na Argentina, além de conselheira da revista Vinca Literária.

Instagram @malvina.rosa

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