ESTHER: JANDIRA ZANCHI

Ilustração: Michal Huštaty 
Bebera demais. Aliás, como sempre. Toda noite era um desafogo, não importava se fosse a terceira seguida ou a única da semana. Era sempre assim, madrugada e lá estava ela, alta, tropeçando um pouco. Algumas vezes tropeçava nos braços de alguém, mas, em algumas, como nessa, voltava sozinha, nem sempre tinha uma amiga para acompanhar. Alguns homens, os poucos que estavam acordados naquela hora, paravam carro, buzinavam, alguns diziam umas bobagens. mas, ela já tinha fechado o corpo. Morava perto do bares que freqüentava e, gostava de molhar os pés na areia, para pelo menos conseguir caminhar.

Bebia mais ainda quando voltava só. Para não pensar, não lembrar, dele, deles, eram tantos. E esses 40 anos chegando, ali, na próxima curva, assombrando. Não tivera filhos, tinha boas formas, muita malhação, não comia muito. Ainda muitos homens chegavam junto. Ela no auge, do desejo, da sexualidade, da força vital. Seria bom um companheiro, mas era um traste maior do que o outro. Até aparecera um sujeito mais sério, desses que fazem carreira em banco, divorciado, perdido na noite, que se encantara com ela, com a desenvoltura, as risadas altas, aquela profissão de atriz tão atraente. Namoraram  um pouco, ele freqüentava os ensaios, dava alguns palpites, foi se enturmando, o pessoal gostava dele. Era uma pessoa muito legal mesmo, e até na cama, olha, que se saía bem. Uma graça de ternura e bondade, compreensão.

Mas, na hora que ele falou em viver junto, ela vacilou. Disse mil desculpas, pediu um tempo, que tinha uma vida agitada, que era uma mulher de muitos homens e… ele baixou a cabeça, aquele argumento pesara, achava que até doera.

  Desculpe, se apressou a dizer,nunca traí você enquanto estivemos juntos. Mas, foram muitos mesmo.
  Imaginei… difícil pensar nisso  – sorriu – ainda assim, eu gosto muito de você, fazia tempo que uma mulher não me encantava assim.Você é linda por dentro e por fora.

Ela fraquejou, chorou, abraçada nele. Disse que não sabia se o amava, não tinha pensado que poderia ir além daqueles bons momentos. Achava que ele estava se precipitando. Os olhos dele, volta e meia no final daquelas noites solitárias eram aqueles olhos que chegavam até seu coração. Foi tão forte que, algumas vezes, ela pensou que se apaixonara ali ou que talvez já estivesse meio enamorada. Só não percebera. Teria se desacostumado a ser bem tratada, mimada, valorizada? Por que o sexo era sempre o centro e o fim de sua vida? Lembrou do marido, das muitas noites em que ele virava para o lado e… nada. Da garota, nem atriz ainda era, com a qual ele estava andando sem ela saber.  A menina, mais jovem, mais bonita, mais passiva, muito mais cheia de admiração por ele do que ela, ficou com o papel que ela queria na próxima peça. Nem gostava de lembrar.

Podia ser meio maluca assim, mas, estudava muito, lia, autores renomados, conhecia os clássicos, arranhava um francês e era fluente em espanhol. Fazia parte do elenco fixo do teatro local subsidiado por uma fundação da prefeitura.Algumas vezes encenavam peças juvenis, meio didáticas, em outras clássicos adultos,bem montados, um ou outro autor local, muito performático e, ela achava, meio vazio.

Sempre namorara, ficara com o pessoal do meio. Algumas vezes um músico, um escritor, um jornalista. Mas, a maioria, produtores, diretores, atores, iluminadores.. tantos…  vivia, se dizia, era isso, vivia, acontecia, varria a cidade, seus bares, teatros, cinemas, pontos de encontro. Vivia, passava boa parte do dia fora de casa. O apartamento, pequeno, só um quarto, era para dormir, ler um pouco, vez em quando algum amigo aparecia e, claro, alguns encontros. Pensava pouco, a bem da verdade, embora pudesse ficar um bom tempo discursando sobre muitos assuntos. Mas, não refletia. Chegara em algum momento a alguma conclusão sobre a vida e… pois zé, então o lance era viver, queimar energia, se doar, encontrar.

Mas, nessa noite, em algum canto de si veio a pergunta: afinal, ela tinha medo de que? Huum,  de que? Pois zé, pois estava parecendo que temia, que pusera uma roda para rodar e por ali se enfiara, no mesmo novelo, na mesma lógica, mudavam as cores, o ritmo, e nem sempre, os personagens, e também nem sempre, a disposição, a alegria… ela fugia? Talvez.  As festas de natal e fim de ano passadas no interior junto a família, meio que instantaneamente vieram a tona. Quando chegava uma alegria, um descanso, os mimos da mãe, os encontros com a irmã. Dava uma semana, uma angústia, dificuldade de ficar quieta, ouvindo as pessoas, fazendo aqueles programas mais lentos, aquelas tardes, sobrinhos, cinema ou praça, um parque, televisão a noite, um livro, as vezes algum amigo que aparecia. A madrugada chegava lenta, as estrelas pareciam tão corretas e serenas, coniventes com a boa gente, sem enfado, sem medo, mas, ela.. passados os 20 dias praticamente voava, quase transtornada, para seu apartamento. Telefonava para todo mundo, muita gente estava fora, viajando, já se engajava em algum projeto, seu ou de alguém, e pronto enfiada na cultura e na boemia como sempre. Procurando homens, maldizendo homens, o círculo e a miséria costumeira. Trabalho, de que ela gostava, mas, poucos pensamentos, palavras, discursos, mas, fuga, uma certa falta de energia, uma queda ela sentia. E o círculo de sempre.

No dia seguinte, um domingo, nenhum ensaio, nenhum compromisso. Levantou mais ou menos cedo, fez um bom desjejum e não foi a praia, como normalmente o faria. Luz demais pensou, o dia aqui é muito aberto. Ele mora em um lugar mais tranqüilo, o apartamento, no térreo, com aquelas plantas, tão agradável. Será que ainda está sozinho? Humm..  será? Não era muito de hesitações, pegou o telefone, discou, a voz dele, tranqüila, alo..

– Sou eu..
– Estava pensando em você
– Podíamos almoçar juntos 
– Venha… eu faço o almoço.
– Te amava e não sabia, pensou baixinho.

          Ouviu o riso dele do outro lado. Um pouco cúmplice, mas, parecia mais seco. Estava se entregando muito rapidamente? Será, ele tinha batalhado tanto. Homens, odiava essas guerras de conquistas.. os mais bonzinhos sempre, sempre, agiam como donos quando percebiam essa entrega… queria tanto ser uma rainha, ainda que de um mundo pequeno. Não o queria servil, mas, agradecido, honrado. Não era assim.

Nunca pensara muito sobre a vida, suas motivações, as origens desse caos que rodeia toda felicidade. Não sabia se a felicidade de fato existia, embora se lembrasse de momentos felizes, plenitude, segurança, o relógio biológico afinado com as cordas do meio. Já fora exultante, sabia que seu mundo era pequeno.  Acreditava em fronteiras humanas, relacionais, talvez essa forma de sentir embutisse códigos um tanto… previsíveis. Talvez. Conhecia mulheres mais duras, mais intelectuais, mais técnicas, porém, a maioria era como ela, um pouco pequena, olhos súplices ou distantes ou ansiosos, vagados pelos horizontes e não pelas metas, amendoados de sonhos ou tristezas, vadios de metafísica, espirituais de conhecimentos muito mais longos do que os dos eruditos, os ditos de muita performance… sim, como ela, quase todas quase na vida, deitadas em sonhos ou esperas.

Ia entendendo que a espera era um fragmento, talvez um lapso, um erro. A dinâmica era falha, funcionava bem na juventude, na antessala da verdadeira festa ou audição ou câmera secreta na qual se iria viver. Alguns inventavam muitas leis e engatavam muitos movimentos. Outros se encolhiam, pródigos em solicitudes, medrosos de grandes espectros, sinuosos, pouco valentes. Melhores os amorosos, aqueles de dádivas inocentes, bondosas, cheios de calor. Deveriam existir anjos que ficavam em volta de gente assim. Vida rica ou pobre, sempre em harmonia, doce bonomia no rosto.

Sei de tudo isso, pensava. O que eu quis então? Gosto dessa vida urbana, do frenesi da noite, amigos…. mas, isso seria assim um pouco erótico ou excitante ou dionisíaco e envolvente… será? É, devia ser o ritmo. Um casamento… talvez ele acompanhasse, aparecesse nos ensaios, estivesse a fim de viver com uma mulher moderna, desenvolta, descolada. Talvez ele lhe desse prestígio, aparecessem papéis melhores, pudessem produzir juntos…

Gostava daquela rua do apartamento dele. Era charmosa, os prédios baixos, no centro, não no nódulo, um centro mais recatado, solícito, próximo a bons lugares, convidativo.

No interfone a voz dele, mas, percebeu que tinha visitas. Ficou um pouquinho contrariada, mas, talvez melhor assim, já fazia um tempo. Subiu as escadas, terceiro andar sem elevador, lentamente, observando detalhes do prédio antigo, imaginando se seria bom viver ali. É, tinha mercado perto, feira no sábado, umas lojas descoladas de roupas, enfim.

No corredor, uma hesitação, uma risada alta, conhecia aquela voz, era mulher. Não acreditou… aquela vaca, mal se falavam. Uns 30 anos, meio gordinha, achava sebosa, aquele cabelo vermelho, trepava, literalmente, com qualquer um… roubava papéis, bebia demais, fazia intrigas. Os diretores gostavam, tinha amigos, era esperta. Mal se falavam. Cumprimentou sem muita efusão e foi entrando. Não viu mais ninguém. A mesa para três, não era possível. A deixaram algum tempo na sala, um pouco mais do que se deveria, falavam, ainda efusivamente, um pouco mais baixo, depois um silêncio,  pequeno suspiro, e entraram. Ele, olhos baixos, como atarefado, ela, séria, meio sorriso.. e então? Pensei que tinha viajado, o Orlando até falou em te chamar para o elenco que vai para o festival de….., estranhei você parecia querer tanto. Viajamos dia 07, o Jeferson vai também, resolveu participar da produção. É um de nós agora… e aqueles risinhos irritantes.

Jandira Zanchi (Egos e Reversos,singularidade)

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