
Luzes da cidade
A cidade lambe sua ferida
enquanto se mumifica na seca.
Úmido de meus humores,
caminho neste deserto
onde nenhuma paixão orvalha.
A angústia de quem é vivo
– os pés já não dão frutos,
o tronco desempinado,
as folhas secas das mãos.
A seca reinventa a fisiologia,
evaporo minhas asperezas.
Os pássaros bicam a claridade,
o branco que tudo empalha.
Maré dos indigentes
O que indefine a maresia
serão os peixes das vísceras,
a flora marinha dos vermes
ou os corais cortantes da fome?
Não se sabe se é homem de rio
ou se homem de mar aberto
se é de água doce da loucura
se é de água salgada da corrosão.
A pele não se lava
e por isso não se sabe se é de couro ou de escama.
Trazem na boca o anzol
que os suspendem à vida.
O coração finge ser molinete:
ora afrouxa, ora repuxa.
A difícil e insistente pescaria de gente
mesmo na ressaca em que vivem.
Arrulham em hordas – noturnas hordas –
nas filas das sopas universais.
As duras asas que desaprenderam
o aviário ato de sobreviver.
Bicam a lata de lixo,
recolhem os milhos da esmola
na estendida mão para a palmatória.
Imolação
O sol se imola
qual corpo em chamas
para cumprir seu alvoroço de hélio.
Ó tempo incendiário,
sem minudências, sem delicadezas,
os corredores da morte das calçadas,
a discórdia fahrenheit em seus mais altos graus.
O demônio do silêncio
A manhã é feminina ou masculina?
Certos dias a vagina da manhã se abre infravermelha
com seus raios de grandes lábios.
Outros dias são emasculados pela névoa
que catarata o falo do silêncio.
Dentro de casa,
a puerícia da luz fraca,
as paredes urinando umidade e descaso.
Aqui habita o demônio do silêncio
que queima mais que a palavra devassidão.
Deserto
Assim a praia deserta,
imóvel, paquiderme de areia,
ventando-se a si própria,
onda que de si se alimenta,
estava o coração do mundo.
As palmeiras perfiladas não discordavam
com suas palmas indecisas
e toda nervura da manhã deserta
era a desfiguração da realidade
postal do tempo estagnado:
praia, homem, olhos e areia.
O que escalda não é a areia fina
nem o sol que se dependura, coco
exaustivo, passado do tempo,
o que escalda é o remorso arenoso.
Este mar que me banha
não é líquido.
Já não tenho a memória dos peixes.

Ronaldo Costa Fernandes ganhou, entre outros, o Prêmio Casas de las Américas, Revelação de Autor da APCA, Guimarães Rosa, Bolsa de Literatura da Fundação Cultural de Brasília e o prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras (2010). No final de 97, publica o romance Concerto para flauta e martelo, pela editora Revan, finalista do prêmio Jabuti-98. Ainda no ano de 1998, edita o livro de poesia Terratreme. Durante nove anos dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil em Caracas. É Doutor em Literatura pela UnB. Publicou os seguintes livros de poesia: Andarilho (2000, SetteLetras), Eterno Passageiro (Ed. Varanda, 2004). Em 2005, pela Ed. LGE, lança o romance O viúvo. Em 2009, sai A máquina das mãos, poemas, publicado pela 7Letras. No final de 2010, saiu seu romance Um homem é muito pouco, da Editora Nankin. O livro de poesia Memória dos Porcos, da editora carioca 7Letras, foi lançado em 2012. Pela mesma editora, publica O difícil exercício das cinzas (2014), Matadouro de vozes (2018), A invenção do passado (2022) e A trama do avesso (2024). Em 2019, publica o romance Vieira na ilha do Maranhão (7Letras). A Academia de Maranhense de Letras publica em 2024 o ensaio Narrativas da vida: o personagem do romance.