Hailla – Tere Tavares

Quando as flores florescem: Tere Tavares
Há feridas sempre que há farpas.

E ter de abdicar de um intelecto tão acurado, e não ter como recuperar nunca mais a geografia que a natureza lhe havia suprimido sem aviso nem perdão. Sobrava-lhe a continuação nevrálgica de sentir-se nas incoerências que arrastava pela vida continuamente nua. O seu clamor para dentro. O seu cansaço fechando a casa quase em definitivo. A sua inabalável esperança de que tudo não fosse realidade. Mas, para a incredulidade de Hailla, era. Apesar e acima da manhã soalheira que lhe colocava cimo em cada mínima alegria. Ela penteou os cabelos. Pintou os lábios. Abriu as janelas disposta a não desaparecer até que tudo voltasse a ser o que havia sido, incluindo camadas, resistências, vacuidades, tudo o que em si se alastrava.

“Contenho a lividez que me espreme a garganta. Vejo a paisagem como uma força a derrotar minha ansiedade.” Hailla, feito uma rocha metamórfica, se compilava para além dos meros e áridos convencionalismos. A convicção de cumprir-se, embora os embargos e aflições era a engenhosa sabedoria de fazer-se agente da própria existência. Assim se referia à sua incondicional decisão de lutar, àquela visão da qual jamais se afastava: “Num primeiro momento, acomodamo-la delicadamente, imaginamo-la na ausência dos devotamentos ou condenações, deixamo-la apenas suspensa onde houver magnitudes, uma possibilidade de mundividência – como num tácito tratado com os seres iluminados”.

Hailla, numa obstinação aclarada pela ineficácia dos valores de trocas, transformava num diferentíssimo santuário o flanar que não pertencia à persistência – uma raridade solícita, mesmo diante da hora derradeira a que todos estão sujeitos, com ou sem arrependimentos, erros ou acertos: “Viver é um gole irrepreensível, um galope de punhais aguardando uma verdade monstruosamente nítida. Certa. Mas há o afeto a meio do caminho. E, como a águia, elevo-me ou escondo-me – quando me pega o cansaço, o desgaste”. Depois de cair, e cair inúmeras vezes, levantou-se palpitando descontroladamente. Porque natividade a cada impossível ornado em sua sina de loba quase inversa.  

Hailla ouviu como se uma purpúrea súplica saísse das entranhas do ar, de tudo o que é temeroso: “Aparece nesse ponto esverdeado que adentra na tarde antes que se faça tarde, antes que a tarde se desfaça”.

Centelhas que eram tão mais do que suposições do que dizia, inclusas as trivialidades e as coisas mais banais, não foram suficientes para que Albert se desapegasse do que lhe gritava as presenças que não quisera ouvir, que obrigou-o ao entorpecimento para represá-las numa inundação que não o deixava render-se. Porque grafava pensamentos. Como quem coze os dias. Como se antecipasse algo. Necessitava de desapropriações que lhe roubassem a falsa tranquilidade, onde, fugazmente, habitava.

Real a vida e inclemente é a  vida: afiar as linhas, fiar a língua sem a fúria, enfurecer a feiura, tornar menos feio o velho e o velho menos fúnebre. Albert, silhueta estranha, quase apoplética, ouvia a temática complexa que conhecia bem. A dualidade amor-ódio capacitava-o a aprofundar-se, como a estética do barroco, desde Shakespeare, em antíteses e consonâncias de uma época que não viveu. A impossibilidade numa altura incansável que, inteligentemente, jamais subestimava.

Hailla promulgou-se numa levíssima e última fala: “O que é pretérito jamais retorna. Como o sal que só conserva as coisas que perdem a vida. Um desalento alegórico, mas farto de belezas. Para reaproximar-me do que almejo, revisito as amarras erroneamente desconhecidas. Reparto-me inteiramente quando amo. Como se dialogasse com a eternidade. Porque o amor sobrepõe-se a tudo. Haverá o distanciamento. A seguir algumas cinzas. Algumas camadas de palha e água. Muito dessa água que, inevitavelmente, passa pelos olhos. Talvez, um dia, eu conte o quanto me custou não contar-te o fio de agora Albert – porque outro depois. Estendendo-me sobre as dobras dos dias. Quero desprender alguma ciência numa áurea de mandalas. É verdadeira a leveza do vento, incomensurável o peso de não desaprender o caminho para outro caminho. Essa evolução que se exalta sem elevar-se. Albert Einstein, em sonho, revelou-me sua concepção sobre as ondas gravitacionais. Mas foi há muito tempo – esse universo tão necessário a brindar-me com equações e volatilidades – porque tudo é um tempo só. Sei-o hoje como nunca e como sempre”.



Tere Tavares é pintora e autora de oito livros: Flor Essência (2004), Meus Outros (2007), Entre as Águas(2011), A linguagem dos Pássaros (Editora Patuá 2014), Vozes & Recortes (Editora Penalux 2015), A licitude dos olhos (Editora Penalux 2016), Na ternura das horas (Editora Assoeste 2017), Campos Errantes (Editora Penalux, 2018).  Participou de antologias, jornais e sites no Brasil e Exterior.

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