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Ilustração: Lenagal |
Por que queria tanto aquele homem? Está certo que vinha vivendo uma vida meio atribulada, sem grandes alegrias ou tristezas, só trabalho, tarefas, responsabilidades. Amigos? Poucos, quando o dinheiro diminuía era difícil resistirem as amizades. Prazeres? Quase nenhum. Bem, então, isso não seria motivo suficiente, tanto pouco, se desejar alguma coisa? Claro, claro, tão óbvio, como negar? Mas, por que esse e não outro? Ele tinha tantos defeitos, tantas mulheres, tão pouco dinheiro.
Dava de ombros. Podia não aparecer, mas, era uma sensual. Jamais faria uma escolha de prazer, de satisfação, usando o bom senso. Nunca, isso jamais lhe ocorreria. Não estava nem aí para o futuro, jamais, só queria era satisfazer um grande desejo, respirar no ritmo da vida, grandes golfadas de ar, satisfação completa. Ainda que não durasse muito. Ainda que dali a dois anos o mundo despencasse em sua cabeça novamente. Queria o amor.
É, ia fazer cinqüenta anos, ele no máximo uns trinta e cinco, não importava. Se amasse, quem sabe pudesse parecer dez anos a menos e viver mais cinqüenta (o que não queria). Agora pedirem para uma pessoa com tantas dificuldades que fosse razoável… era melhor que lhe dessem um atestado de óbito.
Trabalhar naquela secretaria equivalia a cem anos, sem perdão, de trabalhos forçados. Pois os trabalhos eram forçados,
o respeito nenhum, os olhares repletos de doenças, os corpos adoecidos das agressões e sapos engolidos..lentamente… com um vigor e um fel não imagináveis. Era quase um filme de terror, de muita lassidão, de corpos gemendo, se arrastando, de palavras sibiladas, por quem podia se dar a tal luxo,com maldade, implacáveis, premiando o calo e a dor de cada um.
Não poderia dizer que as pessoas, ali, se odiavam. Não, isso nunca. Era muito mais do que isso. Elas odiavam a si mesmas, não suportavam a condição humana no outro, ainda que apenas uma partícula dela. Sobreviventes da exaustão completa das almas, acabaram por se tornarem carrascos, anfitriões do inferno. Um inferno lento, cuspido com vogais minúsculas de ódio, de prazer no rebaixamento do outro. Quem podia, humilhava, se não podia, adoecia, morria, já tinham acontecido suicídios. Quem se importava?
A maior vingança? Um amor, desses rebeldes, cabelos de artista, olhos dolentes… a cama dele, deveria ser o perdão dos condenados a todas as solidões e geleiras do mundo. Seria uma dádiva, um covil de amor e energia, uma negação de morte, uma afirmação de identidade.
Suas olheiras aumentavam, constatava, e nem bebia, quase não saia. Estava atrasada no aluguel, não tinha como comprar roupas novas, pagar uma faxineira, a mãe estava doente e ela tinha eu ajudar com remédios, o único irmão com quem se dava bem não morava mais na cidade.
Só participava das festinhas da secretaria, de alguns lanches de uma prima, do almoço na casa de uma amiga de muito tempo. Teatro quando ganhava um ingresso, difícil um cinema. Trazia trabalho para casa, fazia a contabilidade da sua repartição. Como conseguira ganhar tão pouco? Porque fizera um concurso, antes tinha encarado empresas, assessorias, mas, ficara naquela de segurança. Tinha duas filhas que sustentava mal, a pensão do marido, professor, era pouca. Nunca fazia escolhas muito burguesas. Tinha alma de pobre. Nascera em um meio mais confortável, mas, as escolhas, os gostos, pois zé, funcionária de meio período ganhando pouco, já sem possibilidades de ascensão
Ele era um vizinho, músico, tocava na noite, Dava uma bola, ela se arrumava para ele. Comprara lingerie, sentia calafrios, se decotava nos fins de semana só para passar perto da casa dele. Ele olhava, tinha malícia, sabia que a receberia em casa. Um caso, as vezes sonhava em viver junto. Quem sabe…
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Aquele dia tinha sido exaustivo, voltava eram mais de sete horas da noite, escuro, pouca gente na rua. Morava perto, fazia três quadras de percurso. A janela dele estava acesa, diminui o ritmo do andar. Até parou. Tão lindo, sem camisa , sorrindo. A garota, é, tinha uma garota, amarrava os cabelos, ele deu um beijo na nuca. Ela parecia bonita. Podia ver o brilho dos olhos dela na escuridão.
O peito doía. A filha mais velha, dezenove anos, estava em casa. Deu tempo de acudir. A dor nas costas, no peito, o ouvido zumbindo. O desmaio, ambulância, oxigênio. Brumas, a noite avançava em nuvens densas, um pouco geladas. Nunca a vida doera tanto, fugira tão rápido, quase azul de abstinência e rigor. As meninas, que vida teriam? As escolhas, existiam? O destino, o amor. Tudo tão previsível. A janela dele se fechou. Nunca mais levantou os olhos até lá. O médico disse que tivera sorte. Mas, que teria que operar.
Jandira Zanchi (Egos e Reversos, inédito)