MÁRCIA – JANDIRA ZANCHI

Ilustração: deviantART



Mas, por que mulheres? Ele perguntara. Era um pesadelo, só podia ser. Grosseiro, muito, dependia das decisões dele para cons­truir o novo projeto da sócia e esposa. Então, tinha que ouvir as gracinhas, os madrigais sem costura daquela mente tão… medío­cre? É, devia ser isso, medíocre. Não se explica pele, falou. Mas, já tentou homem, como tem certeza? Teve vontade de bater e dizer: já até pensei, mas fedem e são primatas como você, minha mulher é linda, cheirosa, faz tudo certo… mas, não disse, claro, tinha al­gum amor ao dinheiro e à sua mulher, que dependia daquele traste.

E foram dias, horas desses dias com aquele escroto que a apre­sentava: essa é a Márcia, sapatão (aquela risada idiota), dá para ver claro, estamos construindo o novo escritório da esposa dela … e gar­galhava, o animal. Era inacreditável, poderia denunciar… ou não, es­tava em dúvida, a sua querida relatava muita coisa no seu consultório (que o animal chamava de escritório). Assédios, a ela e recepcionis­tas, machismos diversos, patadas relativas de homens e mulheres, em profissões liberais nada era tão simples. Você, diretamente, dependia do dinheiro do outro. Podia processar ,mas, e o momento, e as contas?

Chegava em casa fodida, calada. Olhava de soslaio para ela. Nem contava mais. Ficava ruminando. Sempre fora independente, valente, pioneira, morara mais de dez anos no exterior, estudando, trabalhando, vivendo uma vida de muitos contatos, amores, amigos.

Tinha um capital de tesouro humano acumulado em pessoas que a admiravam e respeitavam, que a indicavam para várias consultorias. Tinha um temperamento afável, embora a dureza de guerreira, a segurança, os gestos secos do corpo magro, um pouco masculini­zado, mas, ainda assim, suavizados por aquela bonomia de criança.

Ia pensando no decorrer daqueles maus dias. Nunca, an­tes, tivera um confronto real com sua condição de lésbica. A fa­mília aceitara, os amigos evoluídos, as mulheres, as vezes pela primeira vez em uma experiência homossexual, leves, aflora­das pelo seu carinho, a segurança de amor. Por que aquilo? O cara era nitidamente hostil, não a tratava como uma igual…

Mas, aí está, a vida nem sempre tem aqueles contor­nos nítidos, temperados, capaz de unir um fragmento a ou­tro, de fazer uma colagem coerente, articulada. Ia se enchen­do. E muito, e se lembrou quem era. O ego fez a rebelião, talvez em defesa do corpo, da saúde… ou, não? Era calar e seguir?

Peitou o cara. Foi ríspida, falou de seu direitos, de que se sentia ofendida e tal e coisa… o sujeito? Tinha o dobro do tamanho dela… nunca tinha ouvido tantos palavrões.. vaca foi tipo assim uma ame­nidade… sapata, ridícula, imunda… só os primeiros acordes daquela desinfonia. Ainda um empurrão. Tudo aos berros, no meio do cen­tro da cidade, essa machorra para quem quisesse ouvir, essa machor­ra, acreditam que tenho eu trabalhar para a esposa dela,acreditam???

A vítima era ele, sim, a vítima era ele. Na delegacia, chamaram a polícia, claro, ele ainda disse que ia pegar uma arma, continuou aos berros, dizendo eu era pai de família e… inacreditável… chorando, que estava sendo humilhado pela vida, era obrigado, para poder susten­tar seus filhos, a trabalhar contra a vontade de deus (ele nem era reli­gioso), contra os santos mandamentos, para aquela situação absurda, aquela mulher pagã e licenciosa que chupava a… de outra mulher.

Ela ficou atônita… demorou para falar. Como viu que não tinha saída começou a berrar também. De seus direi­tos, do processo por calúnia, difamação e maus tratos que havia sofrido por parte dele. Ela era honrada, trabalhado­ra, vivia uma união estável, jamais molestara ninguém….

Pela primeira vez em sua vida começou a tremer, mui­to, muito, não se dera conta de quanto havia sido agredida, inva­dida naqueles dias. Não agora, naquela explosão barata, cheia de carnificina daquele fascista, mas, em toda aquela prévia que a jo­gou frente a frente com a mais esclarecedora estrutura social.

Uma vez um irmão lhe dissera: você não vive na realidade, o mundo não é esse, você está sentada em cima de uma pirâmi­de de pessoas polidas, honestas, de bom coração. Um círculo, uma elite, ele explicara…. um círculo, uma elite… um círculo… uma eli­te… ela ouvia a ambulância, a maca, a esposa, lágrimas, a mãe… ela caíra, assim, caíra, falava com dificuldade, dentro da ambu­lância, o balão de oxigênio, o coração muito rápido, o ar não vi­nha, ela tremia, não conseguia se expressar, era um soco no pei­to… talvez na alma, na inocência… não conseguia se explicar…

       Talvez sempre fosse doente, ouvia Luíza dizer, nunca teve nada, tão delicada, você não acredita, que bondade, trazia do­ces para as crianças que passavam com aqueles carrinhos da favela, mantinha algumas outras em uma instituição, ajuda­va todo mundo, sorria, me dizia meu amor, meu amor.. era um anjo…era? não, não, amor…chamem o médico, ela treme tanto…

JANDIRA ZANCHI

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