MIRIAM – JANDIRA ZANCHI

Ilustração: Chabru Fernandes


Era dia de prova, o tema da redação, evidente, seria outra causa de aborrecimentos. Conte a história de tua vida… que ironia. Aquelas sínteses de mediocridade não tinham histórias, estórias, e vidas sim, pouco consumo, mas, atividades, namoros, sexo precoce, festinhas, praça… eles conversavam entre si? Não conseguia prestar atenção. Seu humor vinha piorando muito, assim como as dores nas costas. Remédios, médicos, exames, ainda tanto tempo para a aposentadoria.

Trabalho, correções, aulas para preparar, o mestrado em educação, por que não escolhera sociologia, filosofia quem sabe… as dores na coluna, gripes constantes, insatisfação. Tão óbvio, uma prisão tão fechada. Os poucos amigos, um programa cultural ou outro. De vez em quando uma noite, sexo casual, a vizinha que vinha contar dos namorados, tão jovem e uma filha, dependendo dos pais, por que ela precisava ouvir? Por que tinha menos casos ou por que era menos burra? Por que a burrice tinha tantos privilégios? O amor que não acontecia, os projetos de estudos, verdadeiros estudos, daqueles que comovem e motivam, sempre relegados ultrapassados pela realidade de mulher solteira, professora, filha, a mãe vivendo com uma pensão irrisória precisava de tudo. Lazeres, remédios, motorista para vida social e ida ao médico, enfim, também esse trajeto era parte do cotidiano.

Por que não poderia ser feliz? E o que era a felicidade? Não sabia, conhecia poucos felizes, gente mais jovem, iniciando casamentos ou profissões ou faculdades. Uma perua mais realizada, um homem de carreira, uma jovem deslumbrada com a atenção dada aos seus atributos físicos. E era isso, tudo muito físico, muito vazio no front, nenhuma retaguarda para a alma.

A alma, o calor interior, as amplas margens do sentir, da flor e do vento, do corredor úmido do desejo, não desse seco, embalado em celofane de alfaiatarias de plástico, mas, desse fluir recôndito de uma sensorialidade bem sucedida, em flor, em vida. Por que esse pequeno paraíso se fora? Por que o tempo, a entropia, o desgaste, a prisão da sobrevivência, do outro, do amor de mãe e filha, das margens enlameadas dos equívocos e guerras de ascensão e trato da evolução?

Quem lhe responderia? Um pastor, um padre, um psicólogo, uma seita, uma yoga, uma monja, um livro de auto ajuda, um pensador latino? Quem, em algum momento do mundo, se preocupara com uma mulher começando a meiaidade, cheia de dívidas e dúvidas, carente de amor e entupida do fluxo, pesado, das configurações, errôneas, de um tempo tão bruto? Como seria enquadrada? Como depressiva ou ansiosa ou histérica ou frágil ou severa ou megera ou santa? A quem fora dado o direito de classificar as ondas de entrada e utopia de sua vida? Em que trono se sentavam esses juízes, esses algozes que assim a vitimavam, tirando de seu esteio todas as probabilidades de sucesso pessoal, de ego e segurança?

Por que? Não consegui encontrar o erro, porque deveria ter acontecido algum, ou seu ou de outrem ou de estrutura. Não se sentia adequada ao que fazia. Não gostava de ensinar, não alunos como aqueles, que desprezava. Era muito mais ambiciosa, gostaria de viver em uma cidade grande, morar no centro, ter atividades, pessoas, participar de cursos, ir a eventos, bares, conhecer muita gente, viajar, se vestir de uma forma sofisticada. Tentou, tentou sim, não na graduação, mas, tentou um mestrado, uma bolsa, não conseguiu. Não era tão bem preparada, não tinha as melhores relações, não era feia, mas, com certeza nunca fora bonita o suficiente. E nem sequer casou. Naquela cidade os homens eram poucos, os que ficavam por ali ou tinham negócios ou viviam do porto ou da pesca ou do mercado. Um artista ou outro. Tivera poucos namorados. Uma vida parca, mesquinha, sempre com a mãe e a irmã, como ela solteirona. A rotina era quase a mesma de quando era adolescente. O almoço de domingo, a visita dos mesmos parentes, os mesmos pratos, a mesma louça, a televisão. Nem reclamar podia porque sempre tinha pilhas de provas para corrigir. E aulas para preparar. E feiras escolares e visitas com escolares aos dois museus da cidade.

Era muito irritante. Na sala dos professores, a Mirtes, aqueles cabelos vermelhos, sempre muito bem pintados, arrumados, sempre bem acima do peso, os óculos de armação muito boa, as unhas tão bem pintadas, as jóias (Mirtes era judia como ela), tinha mestrado, carro grande, dois filhos, casa grande, empregada e marido. Um marido comerciante, muito bem instalado. Dava aulas na faculdade local e era a diretora da escola. Amiga da sua família, convidava para jantares e outros programas,. Mas, as vezes, falava com ela em um tom… de quem exige ou manda, usava aquele tom rapidamente, depois mudava. Se tivesse alguma dúvida do fracasso de sua vida, bastava ver Mirtes e se ver, e odiar.

 –  Tem jantarzinho hoje, Mirian..
–   É, aqui na escola?
–   Nãooo.. lá em casa
–  Tenho provas para corrigir –   disse, sentindo-se tentada, as reuniões na casa dela eram boas, as pessoas mais interessantes da cidade iam lá.
–  Quero te apresentar alguém..
–  Mesmo? –   por que nunca fez isso antes, se perguntou? Ia fazer 41 anos… porque só agora…
–  Você vai gostar dele, são bem parecidos. É primo do Jorge.
–  Ok… riu, não custa conhecer.

Em casa, no quarto, a cama de solteira, os móveis antiquados, a escrivaninha com provas e mais provas, ficou pensando. Se ele me der bola, um pouco de bola, se ele se interessar por mim, um pouco que seja, eu fico com ele. Se ele quiser, eu vou morar com ele. Lavo a louça, passo a roupa, faço o jantar. O diabo existe e me persegue, caso contrário eu não estaria com 41 anos e nesse mesmo quarto há exatos 37 anos. Se houver uma única oportunidade, um meio convite para sair, eu farei de tudo. Vou fazer mão, pé, arrumar o cabelo, só não vou exagerar demais na maquiagem, embora, a Mirtes se pinte tanto que vai achar, apenas, que eu criei juízo. Se é para morrer nessa cidade que seja então como senhora, com direito a estar na mesa de Mirtes no clube no sábado a noite, jogar na noite de casais na casa do prefeito, receber minha mãe e minha irmã com um jantar bem feito. Só venho aqui nos domingos e só para um lanche. E mais, mesmo que ele tenha 5 filhos e eu não herde nada, eu topo. Vou para uma secretaria ou vou ser vice na escola. Fico nesse buraco em que nasci, porque já fiquei, mas, os comerciantes vão dizer bom dia Dona Mirian, com aquele olhar de homem que cumprimenta mulher que tem homem e conforto, e não, oi Professora Mirian, que belo dia não, com voz um pouco infantilizada e neutra que se usa para a professora dos filhos.

Antes de sair, arrumando alguns livros na estante da sala sob o olhar curioso da mãe, a irmã nem para levantar a cabeça do crochê, pensou:
– Deve ser essa a tal hora da estrela.


JANDIRA ZANCHI (de Egos e Reversos, inédito)

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