no descampado branco – Vanessa Maranha

Ilustração:  Ketten karussell
A aragem de sal sobre a panela em vapor, pensamentos ociosos, Jordana como uma garça diante do fogão, uma perna em linha reta, a outra semi-dobrada, o pé apoiado sobre o outro que então sustinha o corpo inteiro.          
                                   
Cozinhava contrariada, em automatismo, enjoada do próprio tempero, mas não tinha remédio. Agenor nunca admitia comer fora, divisando temeridades nas cozinhas comerciais, terror à suposição do salitre, insegurança por não conhecer as mãos que preparavam o que depois lhe correria por dentro. Não supunha, porém, estar ingerindo diariamente o sem-vontade da esposa naqueles pratos que aparentavam esmero, mas eram a síntese do desespero manso nos dias infinitos de Jordana.     
                            
Ao menos apaziguava na mesa alguns dos apetites daquele homem. Era um refresco para o entretempo que se seguiria até desaguar na madrugada, três da manhã, quando ele no escuro começava a latejar e a se mover arrancando-a de seus sonhos,  faminto e selvagem, um alvoroço de pernas; com o joelho ele a imobilizava firme ao seu comando até se aproximar da saciedade sinalizando desfecho. De volta à cama, encontrava roncando o homem ungido do seu próprio sumo, imerso nos seus porões. Pensava então na inutilidade desses embates, casal que não geraria filhos.    
 
Depois, num laivo de lucidez, lembrava da chegada do homem embrutecido em casa. Agenor tinha a força e a compleição de um touro, uma sombra mefistólica, leve inquietação bestial. Um olhar mais detido sobre a sua corpulência mostrava a definição de músculos, como um acolchoado de proteção sobre o corpo, as veias saltadas na pele e o júbilo aos sábados, bem cacimbados: dia de luta. Literalmente. 
                    
Durante a semana, a estiva maçante que garantia a manutenção e dureza daquela vida, o sábado era a cereja do sorvete, o momento inadiável de pisar o palco, o tatame e  desviar-se, ainda que brevemente, do anonimato como ferida crônica em si. Ali no ringue já alçara a classificação peso-pesado, o público fiel, o resfolegar das apostas, o suor marejando por toda a superfície, a sua e a do outro, adversário da vez, e o embate de nervos, ossos, carne bruta em atrito e força, em empuxos, fricções, sopetões, em prensas e proximidade de hálitos, misturavam-se, engarranchados, às vezes em frenesi, sob gritos insuflantes, os dois homens, até o ápice ensaguentado, juiz intervindo antes do irremediável. 
                                                    
Jordana até festejava o único dia da semana em que o marido acordava disposto e feliz – todos os outros seguiam iguais, na modorra da contrariedade, no mau-humor da insignificância de descarregador de contêineres, seguindo a fila dos seus iguais sob a chibata verbal muito afiada do seu Breno, o encarregado da turma que, parecia até de propósito, nunca memorizava o seu nome e o chamava às vezes de Boi ou de Grandão, não supondo, ou talvez não querendo supor de quem se tratava ali.          
     
Os sábados de Agenor se estendiam madrugada adentro em bebedeiras, jogatinas, excessos. Nessas noites justa e docemente ela, Jordana, dormia, livre de sobressaltos.  Mas os domingos, ela sabia e aceitava sem grandes dilemas, acabavam reservados para a ressaca e os curativos da pancadaria; as compressas, os analgésicos e o silêncio. Da boca quase sempre avariada de Agenor, nenhuma palavra aos domingos, nem sequer pedidos.
 
Por outra, era como o mundo fazer-se de repente todo estéril. Onde nada brotava. A vida sem temperança, nenhuma centelha para lume. Era quase nada. A gente da casa de poucos risos e, se os havia, mínimos, só por ocasião do tropeço alheio, que disso se abastavam. No descampado-branco-de-não-criar – ou riso somente enviesado – Jordana se sentia morrer um pouco. Todas as noites ao se deitar, um sufoco lhe abraçando a garganta, fazendo-se depois pigarro desesperador, um gato agarrado sem trégua às vias aéreas, em ranhuras de se libertar, o sono somente vindo para aplacar a agonia que era amordaçar-se assim, como mal autoinfligido.    
                                    
Quantos cios desperdiçara na batalha infértil entre lençóis? Quanta alegria derramara à porta da casa branca da família do Agenor? Era atravessar a porta, cumprimentar a gente hostil, sentar-se à mesa sem vida, comer da comida insípida – economizavam sal, os dali, nada sabiam de temperos – para perguntar a si mesma qual era, afinal, o propósito.             
                                                                                    
Se ao menos o homem forte lhe fecundasse um filho, uma única semente com que pudesse ali se justificar, com que pudesse continuar. Por certo acusavam-na a ausência de filhos, que havendo agregados, aos seus próprios a família não acusaria, e, ademais, falavam sem exatamente dizê-lo: o mais que orbitem, nora-cunhada não são entes. No máximo alguma tolerância, no mínimo, os alvos perfeitos para a maledicência de que eram capazes. Num dos domingos brancos desvairou olhando os rostos em volta da mesa. O traço comum a todos eles, de ossatura facial proeminente moldando faces de cortes abruptos no queixo e maxilares. Os corpos avantajados.       
    
Pensou, e foi a primeira vez que tal ideia lhe veio, que talvez não quisesse, no fundo, perpetuá-los. A gente da cara quadrada. A gente sem fineza alguma. A gente subsistente, sem espirituosidade. O Agenor como um cavalo lustroso, mas, enfim, cavalo, bruto e irracional, com quem pouco partilhava.      
                                        
Pensou também que talvez se excedera nisso, deixara o tempo correr, sem dele se apoderar em resolução. De todo modo, havia reunião de madames para participar, ao lado de Hortênsia, cumprir protocolos que seriam de Alice Zulmira. Vestiu-se como pôde, um hibisco rosa atrás da orelha, que fez Agenor gargalhar e perguntar se não estava chinfrim demais com aquela flor atrás da orelha, para tal ocasião. Hortênsia escolhera chapéu, sempre encantada com as festividades britânicas que via na TV, computava no chapéu cor de pêssego e pequenas plumas
brancas o seu quinhão de realeza para evento assim, tão longe de si.                 
                                                
A Marta, mulher do dono da fábrica de sabão, dizia já de entrada às convivas todas, o sorriso aberto e raivoso em batom carmim: “homem é difícil, né?”, reclamava ela de um dito desvio de rota. Que o tal marido queria ir a Paris, já até pagara a viagem, o quanto bastava para forçá-la a adiar a promoção de outro jantar beneficente às suas lantejoulas de vestido novo ou, melhor, à campanha do agasalho para as crianças pobres do manguezal.                  
                                                                          
Zulmira, então proprietária, se alçara ao meio dos “proprietários” daquela ilha, mas nunca se sentira pertencer, exceto pelos lamentos daquelas mulheres por maridos opacos demais ou ofuscantes em excesso, e, desses últimos, guardavam inveja não-admitida. Eram, em suma, doridos, os mesmos não-casamentos. Jordana e Hortêsia pairavam ali, dois coloridos e baianos peixes fora d´’agua, nunca haviam estado, senão do lado da cozinha, com aquela gente estranha demais.        
                                        
-Imagine, reclamar de ir a Paris, Hortênsia cutucou a amiga.           
                    
-Desdenha só pra contar da ida e, para não se sentir culpada, diz que vai contrariada, isso sim, sibilou Jordana, o que provocou risos incontidos na amiga. Algumas senhoras lançaram olhares censores sobre as duas destoantes ali, as representantes da dona do hotel.                        
-O negócio é comer então, Hortênsia! Vamos nos refestelar, olhe lá como a mulherada come disfarçadinho… A Jurema da Pousada do Norte, veja a empedernida, até vira de costas para abocanhar a torta de chocolate, achando que ninguém vê!    
        
-Quieta, daqui a pouco vêm nos expulsar!               
                                                   
Mas, era isso. Uma reunião em que se comia e bebia fartamente, em que se desfilavam roupas, sapatos e esbeltezas muito custosas numa espécie de ringue. Enfim, reuniões para destilar peçonhas e frustrações, entrar nos embates mais cínicos e sorridentes – quanta raiva traziam em si as mulheres aprisionadas em seus bonitos vestidos e maquiagem e sobrenomes. Uma viagem a Paris como afronta a reafirmar Marta na sua inexistência, também, pouquíssimo de si esta mulher realizara, sempre em guerra com a confortável e larga sombra que o marido, o do sabão, lhe era.  
   
Apunhalavam-nos, portanto, a esses maridos, nessas festividades, sob as suas miras irônicas como se no fundo os considerassem uns bobões, os mesmos que eventualmente, aos instintos, reclamavam com brutalidade os seus corpos-propriedade, não se importando com o mínimo desvelo que tais corpos ricamente adornados pudessem pedir. Era vê-las ali, o desafeto, estar objeto, talvez troféu, nenhum amplo cuidado, que bem pagas e com isso se contentassem. E se embelezassem.    
                
-Alice pensaria que não sabiam mesmo o que era suster um homem que em sua direção jamais vinha, cochichou Hortênsia.    
                                                                          
-Ah, vamos embora logo desse lugar. Antes um forró. Antes qualquer lugar em que os seres não se falseiam tanto e as mulheres se peguem mesmo aos arranhões e mordidas e puxões de cabelo, do que esse gelo aqui. Já recebi uns cinco olhares de rancor de mulheres que nunca vi antes. Só faltaram rosnar.
 
 
(Capítulo do romance Começa em Mar, que recebeu Menção Honrosa no Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura 2106).
 
 
 
Vanessa Maranha é autora com prêmios, finalismos e participações na bagagem. Participou de várias antologias de contos, entre elas +30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (Record, 2007), organizada por Luiz Ruffato. Em 2001 foi finalista ao Prêmio Guimarães Rosa da Radio France Internationale; em 2004, venceu seleção de contos da Universidade Federal de São João Del-Rei (MG).   Foi selecionada para as oficinas literárias da FLIP em 2010 (Jornalismo Literário), 2012 (Crítica Literária) e 2016 (Shakespeare; promovida pelo British Council). Em 2012 venceu o Prêmio Off Flip, no ano seguinte, o Prêmio UFES de Literatura (Universidade Federal do Espírito Santo) com o livro de contos Quando não somos mais (EDUFES, 2014) e também o Prêmio Barueri de Literatura 2013/2014 com Oitocentos e sete dias (Multifoco, 2012). Foi finalista ao Prêmio São Paulo de Literatura 2015 com o seu romance de estreia Contagem regressiva (Selo Off Flip, 2014).  Em 2016 lançou o livro de contos Pássara, pela Editora Patuá. Começa em Mar é o segundo romance da autora e recebeu Menção Honrosa do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura 2016.
 
 

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