O menino debaixo da mesa – Leopoldo Comitti

Ilustração; deviantART

III

Um gato gordo

e um ursinho de pelúcia

descansam na cama.

Uma pata afaga o pelo,

outra coça a orelha.

Ociosos olham o teto

 com olhos vivos de vidrilho.

(Que amores infantis são esses

que nos tocam tão intensamente?)

IV

Plantas na janela

balançando

ao toque de mão

nas avencas

de suas pernas.

Uma chaleira na cozinha

ferve a água

 do café da manhã.

– Menino bonito!

(alguém sussurra no vapor.)

V


A mesa na sala

sob o telhado sóbrio.

(Não durmo).

E na xícara derramada

gotas de gestos esparramam-se pela mesa

como migalhas de pão.

(Não ouço)

o ruído da colherinha

em rodeios delicados pela porcelana:

camomila, camomila, camomila…

VI

Frágil cena.

Sem chá ou perfume

o menino se encolhe debaixo da mesa

sob pés, sobre pós, sob o dossel

da toalha xadrez.

Bicos de crochê azuis

são filtros para o mundo,

em que as pessoas são imensas

os pés são imensos

as vozes são imensas.

VII

Sob a mesa há penumbra.

Sobre a mesa, a toalha sempre xadrez,

como tabuleiro à espera

de um jogo que o menino não joga.

Não. Ainda não desta vez.

Abre a caixa de sapatos:

um a um surgem os reis,

encantados em seus sonos de papel.

VIII

Um galho bate na janela.

E bate de novo, novamente,

e cansada a madeira estala.

(É um grilo, mãe:

mãe, é um grilo.)

Chove. A luz se foi no estalo do raio.

A escuridão arregala os olhos

e treme.

(Morreu alguém)

A lâmpada pisca, pisca e queima.

Uma lufada escancara a porta:

chuva, mato, grilo,

tudo entra.

Um galho bate na janela

e pelas frestas da vidraça

entram assombrações.

(Ouça o grilo!

Morreu alguém, mãe.)

Leopoldo Comitti é poeta, escritor e ensaísta. Cursou Letras e especializou-se em Literatura Brasileira. Tem doutorado em Literatura Comparada e pós-Doutorado em Comparada. Em Curitiba, foi um dos fundadores da Coo-editora, pela qual publicou Jornada (contos), e As manhas da Filó (infantil). Foi Professor Adjunto da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), onde, além das atividades de ensino e pesquisa, dedicava-se a oficinas de criação poética. Em Minas Gerais publicou Fundo Falso, seu primeiro livro de poemas. Obteve uma bolsa de escritores da Biblioteca Nacional, em 1999, na categoria de Poesia, com Por Mares Navegados. Foi também premiado, na mesma categoria, no 4º Festival Universitário de Literatura, com Jardim Inóspito.

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