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Ilustração: Dilka Bear |
4. O tempo
I
Sentir convulso.
Eis o equilíbrio
Das coisas. Não mais
O
verbo, encarnado
Em gelo, transfigurado
Em carne fria
O
verbo, encarnado
Em gelo, transfigurado
Em carne fria
E racionalidade impura.
II
Tanto ver a sombra
De ser, no corte
Rápido da faca.
Modernas palavras?
Hoje tão antigas
Em sua frieza turva.
Talvez turva e forte.
III
Ainda vibra a
corda
corda
Do instrumento verbal
Que a mim me fiz.
Faço-me agora,
Porque resta,
Resta-me apenas
E sempre o
mesmo,
mesmo,
Agora espectante
E certo no absoluto
Da resposta calada.
V
Sórdido relógio! Execrável Tempo
que ainda resta!
Minutos, rápidos, lógicos
Ou lentos, sempre serão pesados.
Há fluxos,
correntes, fusos
correntes, fusos
E rocas que perfuram dedos.
Dormir? Quem dera
por anos.
por anos.
Mas o pêndulo oscila e bate:
Talvez ou dores, de um toque
Que nos
desperte. Inexorável
desperte. Inexorável
VI
Há veludo no sangue
que escorre da ferida
exposta. Coágulos macios
se formam
quando
quando
o líquido mordaz
não
escorre pela face
escorre pela face
árida. Um contraste
estranho: os traços
se fazem duros e cortantes,
enquanto seu
rompimento
rompimento
provoca uma sensação
de volúpia sensual.
A dor vive. A indiferença
cristaliza. Cristal
de dor:
de dor:
nasce o enigma da
força que pestaneja
a cada contração dura
de músculos e faces.
VII
As sensações que não
podem ganhar
voz,
voz,
ganham palavras
escritas. Encerradas
em uma cripta
insistem em voltar.
E voltam sempre
Num sopro. E se
repetem no
papel
papel
aberto, única fissura
na surdez que envolve
horas
e minutos.
e minutos.
VIII
Guarda-chuvas nas lagoas
e mãos de barro:
O aguaceiro de verão
Refresca, vira festa
e os atoleiros crescem
em frente das casas.
Barcos de papel
em represas improvisadas.
A infância sempre
me pareceu líquida.
IX
Um tortuoso rio
corre pela montanha.
Não banha o vale
e nem rega as árvores
de suas margens:
carrega
fogo
fogo
e sombras.
X
A chuva se
vai
vai
e vem o cheiro
de terra, de lama
podre no chão
amolecido. O sol
em vão tentará
trazer odores
e a suavidade
das poucas, quase
raras, flores
do caminho.
XI
Vai a pipa.
Vira. Revolta
de vento e chuva
e enrosca o galho
de sempre;
o mais alto
serpente.
Descolore sob a chuva
e
se faz forte
se faz forte
mesmo se desfazendo
aos poucos.
Gravemente, lembra
(– morreu alguém, mãe? Não morreu?)
não mais pipa
não mais vento:
espantalho tosco
no quintal
esquartejado
pelos pingos,
surdo pelos trovões.
XII
O sentimento
tem
tem
a cor do invisível
tumular. Às vezes
a pátina das lápides.
Ora, a tonalidade
da cor impossível
que se acumula com
os meses
os meses
e possui o veneno da áspide.
O ar rarefeito retém
o tom da reciprocidade
XIII
Há algo de oco
no espaço da escrita:
um sorvedouro,
redemoinho
de sons
de sons
e cores que se desfazem.
Negra, pulsante,
a letra absorve,
suga
aos poucos
aos poucos
sem pressa, consome.
Nem o nada existe:
Apenas
um buraco.
um buraco.
XIV
Amanheceu. E chove.
A água rola
pelos bueiros
escuros e desaparece.
Para onde vai?
Refazer o ciclo
Que já não há.
XV
No varal a roupa seca.
Está limpa e úmida.
Mesmo assim tudo ali
é feito de despojos do dia.
Apenas se retirou a mancha
de mais um pedaço
de vida, talvez inútil.
XVI
O tempo já não me serve.
Estou fora dele, como alguém
que perdeu a memória.
As horas são longas,
os minutos infinitos.
Ver de fora só mostra
a inutilidade do relógio
que
teima em marcar
teima em marcar
aquilo
que não existe.
que não existe.
Leopoldo Comitti é poeta, escritor e ensaísta. Cursou Letras e especializou-se em Literatura Brasileira. Tem doutorado em Literatura Comparada e pós-Doutorado em Comparada. Em Curitiba, foi um dos fundadores da Coo-editora, pela qual publicou Jornada (contos), e As manhas da Filó (infantil). Foi Professor Adjunto da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), onde, além das atividades de ensino e pesquisa, dedicava-se a oficinas de criação poética. Em Minas Gerais publicou Fundo Falso, seu primeiro livro de poemas. Obteve uma bolsa de escritores da Biblioteca Nacional, em 1999, na categoria de Poesia, com Por Mares Navegados. Foi também premiado, na mesma categoria, no 4º Festival Universitário de Literatura, com Jardim Inóspito.