O menino embaixo da mesa/O tempo – Leopoldo Comitti

Ilustração: Dilka Bear

4.  O tempo
I
Sentir convulso.
Eis o equilíbrio
Das coisas. Não mais 
O
verbo, encarnado 
Em gelo, transfigurado 
Em carne fria

E racionalidade impura.

II

Tanto ver a sombra
De ser, no corte
Rápido da faca.
Modernas palavras?
Hoje tão antigas
Em sua frieza turva.
Talvez turva e forte.
III
Ainda vibra  a
corda
Do instrumento verbal
Que a mim me fiz.  
Faço-me agora,  
Porque resta,
Resta-me apenas
E sempre o
mesmo,   
Agora espectante
E certo no absoluto   
                   Da resposta calada.
V
Sórdido relógio! Execrável Tempo 
que ainda resta!
Minutos, rápidos, lógicos
Ou lentos, sempre serão pesados. 
Há fluxos,
correntes, fusos
E rocas que perfuram dedos. 
Dormir? Quem dera
por anos. 
Mas o pêndulo oscila e bate: 
Talvez ou dores, de um toque 
Que nos
desperte. Inexorável
VI
Há veludo no sangue 
que escorre da ferida
exposta. Coágulos macios 
se formam
quando
líquido mordaz 
não
escorre pela face
árida. Um contraste
estranho: os traços
se fazem duros e cortantes, 
enquanto seu
rompimento 
provoca uma sensação
de volúpia sensual.
A dor vive. A indiferença 
cristaliza. Cristal
de dor:
nasce o enigma da
força que pestaneja
a cada contração dura 
de músculos e faces.
VII
As sensações que não 
podem ganhar
voz, 
ganham palavras 
escritas. Encerradas 
em uma  cripta 
insistem em voltar.
E voltam  sempre 
Num sopro. E se 
repetem no
papel 
aberto,  única fissura 
na surdez que envolve 
horas
e minutos.


VIII
Guarda-chuvas nas lagoas 
e mãos de barro:
O aguaceiro de verão 
Refresca, vira festa
e os atoleiros crescem 
em frente das casas.
Barcos de papel
em represas improvisadas.
A infância sempre 
me pareceu líquida.
IX
Um tortuoso rio 
corre pela montanha.
Não banha o vale
e nem rega as árvores 
de suas margens: 
carrega
fogo
e sombras.
X
A chuva  se 
vai 
e vem o cheiro 
de terra, de lama 
podre no chão
amolecido. O sol
em vão tentará
trazer odores 
e a suavidade
das poucas, quase 
raras, flores
do caminho.
XI
Vai a pipa.
Vira. Revolta
de vento e chuva 
e enrosca o galho 
de sempre;
o mais alto 
serpente.
Descolore sob a chuva 
e
se faz forte
mesmo se desfazendo 
aos poucos.
Gravemente, lembra
(– morreu alguém, mãe? Não morreu?)



não mais pipa 
não mais vento: 
espantalho tosco 
no quintal 
esquartejado 
pelos pingos,

surdo pelos trovões.
XII
O sentimento
tem 
a cor do invisível 
tumular. Às vezes
a pátina das lápides.
Ora, a tonalidade 
da cor impossível
que se acumula com
os meses 
e possui o veneno da áspide.
O ar rarefeito retém
o tom da reciprocidade
XIII
Há algo de oco
no espaço da escrita: 
um sorvedouro, 
redemoinho
de sons
e cores que se desfazem.
Negra, pulsante, 
a letra absorve,
suga
aos poucos
sem pressa, consome. 
Nem o nada existe:
Apenas
um buraco.
XIV
Amanheceu. E chove.
A água rola 
pelos bueiros
escuros e desaparece.
Para onde vai?
Refazer o ciclo 
Que já não há.


XV
No varal a roupa seca. 
Está limpa e úmida.
Mesmo assim tudo ali
é feito de despojos do dia.
Apenas se retirou a mancha 
de mais um pedaço
de vida, talvez inútil.


XVI
O tempo não me serve. 
Estou fora dele, como alguém 
que perdeu a memória.
As horas  são  longas, 
os minutos infinitos. 
Ver de fora  mostra 
a inutilidade do relógio 
que
teima em marcar
aquilo
que não existe.


Leopoldo Comitti é poeta, escritor e ensaísta. Cursou Letras e especializou-se em Literatura Brasileira. Tem doutorado em Literatura Comparada e pós-Doutorado em Comparada. Em Curitiba, foi um dos fundadores da Coo-editora, pela qual publicou Jornada (contos), e As manhas da Filó (infantil). Foi Professor Adjunto da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), onde, além das atividades de ensino e pesquisa, dedicava-se a oficinas de criação poética. Em Minas Gerais publicou Fundo Falso, seu primeiro livro de poemas. Obteve uma bolsa de escritores da Biblioteca Nacional, em 1999, na categoria de Poesia, com Por Mares Navegados. Foi também premiado, na mesma categoria, no 4º Festival Universitário de Literatura, com Jardim Inóspito.


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