O principado greco-romano e o resgate do cânone judaico-cristão (Uma introdução), ensaio de Mateus Machado

O Ancião dos dias (1837), pintura de William Blake

Eis que o semeador saiu a semear… Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!
Mateus 13:3-9 (versão Peshitta)

A influência pagã no cânone ocidental
 
A formação da tradição poética na cultura ocidental, reconhecida, hipervalorizada e disseminada como parâmetro para a criação, é a greco-romana, porém, a cultura judaico-cristã, tendo a bíblia como cânone poético-literário, também é, ou deveria ser, fundadora da nossa cultura no âmbito estético/literário, mas foi relegada à dimensão da religião, passando a ser desprezada, inicialmente pelas academias, caindo depois no consenso geral cada vez mais secular, não pela falta de valor literário intrínseco nas escrituras, mas certamente por um preconceito sistematizado do pensamento moderno/pós-moderno.
 
Inclusive, algumas escolas teológicas só toleram o Antigo Testamento alegando, e usando o chamado Tempo da Lei, como um período já superado pelo Novo Testamento; ou seja, o que é velho ficou para trás. A própria tradição da igreja que diz e prega que o Novo Testamento foi escrito em grego, algo controverso, é prova da influência pagã no pensamento e, por extensão, no imaginário dos próprios cristãos. As teologias cristãs, se não todas, ao menos em grande parte, são formadas por essa mesma base de influência greco-romana, ou seja, até mesmo as teologias cristãs estão envoltas com pensamento pagão.
 
O cânone literário ocidental, reconhecido e atestado pelas academias, tem Homero como seu representante maior. Tal cânone grego, e por extensão consideramos aqui também a herança latina (romana), é mais abrangente e mais rígida em suas formas clássicas, que são marcadas por estruturas fixas, métrica rigorosa e forte ligação com música e performance. Entre as principais formas clássicas encontramos o épico, a lírica, a elegia, a ode, a sátira, o epigrama, entre outros.
 
Essas formas foram recuperadas e adaptadas no Renascimento e na literatura ocidental moderna, influenciando sonetos, odes, elegias e até mesmo romances em verso. Ainda que tais formas estejam atualmente esquecidas ou enfraquecidas, devido as demandas exigidas pelos modernismos, a influência do pensamento canônico permanece.
 
Outro ponto importante é sobre o eu lírico, elemento basilar da poesia lírica. A poesia contemporânea está assoberbada do “eu”, e tal “poesia da selfie” demasiada antropocêntrica, é casca de ilusão, é venenosa ao espírito, é água parada, e como escreveu William Blake: Espere veneno da água estagnada.
 
Estamos diante de um cânone panteísta, com inúmeras vertentes, cada uma dessas vertentes com sua “verdade”. Os caminhos são vários, quando não se bifurcam entre si; essa é a essência do panteísmo. Todos os caminhos levam a Roma, podemos expandir esse ditado: Todos os caminhos nascem da Grécia e por extensão se ampliam em sua versão latina; não deixa de ser uma obra de engenharia cultural centrípeta; sempre voltando ao centro, ao eixo de rotação que é Roma & Grécia, governados por uma mesma casta de principados; cito o termo “principado” aludindo ao livro de Daniel, sobre a influência espiritual do principado persa naquele período e contexto cultural.
 
Agora, quando falamos em cânone judaico-cristão, bibliocêntrico, há um só caminho. Aqui estamos diante de um dilema; o autor que aceitar o desafio de reconhecer e resgatar o cânone bíblico, deverá prontamente se posicionar contra o zeitgeist contemporâneo, que é altamente secular, materialista, desconstrutivista e hostil à cosmovisão judaico-cristã. Aqui será preciso uma escolha que, sendo honesto, não será fácil.
 
O cânone judaico-cristão é extremamente mais exigente no conteúdo e no compromisso com a palavra, pois aqui adentramos na esfera do sagrado e da revelação divina, ou seja, o autor pode em algum momento se deparar com o supranatural e o sobrenatural. Por outro lado, as formas são mais flexíveis e o autor tem maior liberdade. Razão & Imaginação só podem ser dons potenciais dados ao homem por D’us; e imaginação, segundo Blake, é Visão Divina. E como testificou o poeta inglês, a bíblia é o Código dos códigos da literatura ocidental, mais do que a obra homérica.
 
Religare
 
Mesmo quando se fala em poesia religiosa na tradição literária ocidental, considera-se o cânone greco-romano como fonte primordial, com seu arcabouço mitológico, mas também de fé e devoção, além da reflexão sobre a relação entre os homens e os deuses, a coexistência entre a natureza divina e a mundana. Encontramos as raízes da poesia religiosa, registradas nos hinos e poemas, celebrando deuses e deusas, oferecendo orações e súplicas, narrando suas histórias.
 
Temos que considerar o papel das Musas e todo o contexto religioso envolvido na época de Homero e seus contemporâneos. Obviamente que, com o surgimento do Mundo Moderno, o papel espiritual e inspiracional das Musas foi aos poucos banido para dar lugar à Era da Razão e do Cientificismo cartesiano. A Musa virou peça de museu em um mundo racional e mecanicista, o que dirá em uma era digital.
 
Homero, com a Ilíada e a Odisseia, é o pilar da poesia ocidental, narrando feitos heroicos carregados de crenças e valores. Assim como na antiga Roma, Virgílio escreveu o poema épico Eneida, narrando assim a fundação de Roma, incorporando elementos da mitologia greco-romana.
 
É importante ressaltar aqui um conceito chave; aquilo que o homem moderno chama de mitologia, para os antigos era religião. E olhar para o mundo antigo com a mentalidade moderna é cometer erro primário, pois qualquer percepção desse olhar míope já nasce condenado aos equívocos. Vale lembrar que o homem moderno, com toda a sua bagagem filosófica/existencial, científica/tecnológica, não consegue suportar as próprias contradições; por isso é mais fácil e conveniente colocar a religião, seja de matriz pagã ou judaico-cristã, na esfera dos mitos.
 
Hibridismo canônico
 
Na Idade Média, em plena era cristã, houve um renascimento da poesia religiosa, porém, calcada no cristianismo, com Dante Alighieri e sua Divina Comédia. O que significa que a poesia religiosa, dentro do cânone bíblico, só aparece a partir da Idade Média, ou melhor dizendo, só é considerada com o aval da igreja católica romanizada.
 
O problema é que a poesia do cânone bíblico é inserida na tradição ocidental com os elementos da poesia pagã do cânone greco-romano, gerando assim um hibridismo canônico; no caso, a união antagônica entre politeísmo e monoteísmo. Em se tratando de uma identidade espiritual, tal hibridismo, citando Apocalipse (3:15-16): És morno, não é frio e não é quente. Eu o vomitarei da minha boca.
 
Dante é o primeiro grande poeta cristão com a mentalidade greco-romana e, segundo René Guénon, o cristianismo de Dante está carregado de elementos gnósticos; Virgílio foi o guia do vate Florentino, notadamente um pagão. No entanto, Dante, impregnado com o pensamento católico, faz um acerto criando o limbo, um lugar de tristeza, mas onde não há tormentos, que é reservado para Homero, Virgílio, Sócrates, Aristóteles, entre outros, os chamados pagãos virtuosos. Eles jamais alcançarão o Paraíso. Virgílio o acompanhará pelos círculos infernais e purgatoriais, mas não poderá seguir na jornada até o céu.
 
Esse hibridismo canônico se estabelece no Renascimento, só para citar dois exemplos, com Camões e John Milton e seu Paraíso Perdido. Mesmo reinterpretando a história da criação e da queda do homem, Milton assim o faz inserindo elementos greco-romanos, na forma, bem como no conteúdo, evocando divindades e figuras do panteão mitológico. Tal fenômeno se expande com a modernidade. Tais poetas, católico ou protestante, não desvincularam a mentalidade greco-romana, sua influência, do cânone judaico-cristão.
 
Fato é que a tradição homérica é a que mais ressoa na cultura ocidental, dentro do espectro literário. E isso é facilmente explicado pela consciência helenística herdada e hibridizada pela igreja católica romana, se afastando das raízes judaicas da igreja primitiva. Nem mesmo a Reforma Protestante foi capaz de restaurar as raízes da igreja primitiva do judaísmo nazareno, pois já nasceu helenizada. E a força e influência da consciência helenística é tão profunda na cultura ocidental que ela foi capaz de moldar, até certa medida, o cânone judaico-cristão, principalmente através da Septuaginta e com o Novo Testamento “escrito” em grego.
 
Contraponto duas águas
 
É óbvio a contribuição do cânone greco-romano no mundo ocidental, seja pela potência criativa, a força narrativa, por todas as nuances daquilo que chamamos de belo, as técnicas envolvidas, as formas e toda a rica complexidade ao explorar a alma humana e decifrá-la.
 
Há beleza, elevação moral, reflexões sobre o Ser e o Mundo. Mas se por um lado temos Homero ou Virgílio e suas obras, do outro temos Moisés e a Torá. O Cântico dos Cânticos não deve nada aos exemplos mais perfeitos da poesia lírica, seja dos antigos clássicos ou dos modernos. Você pode alegar que Cervantes foi um gigante, prova é o universal Dom Quixote. Compare as aventuras de Sancho Pança e Quixote às histórias de profetas como Elias, Isaias, Jeremias ou mesmo Jonas, só para citar alguns.
 
Romances e conflitos palacianos ou burgueses, não importa, Balzac ou Victor Hugo, Dostoiévski ou James Joyce, todos com obras fundamentais, sem dúvida. Mas como renegar o Livro de Ester ou o Livro de Jó? Como não se emocionar com a história de José no Egito ou com o Livro do Êxodo? Quer mais tragédia que as histórias narradas no Livro de Números ou força poética inserida nos Evangelhos ou no Livro do Apocalipse?
 
Considere os grandes monólogos ou diálogos do cânone greco-romano, pegue o Banquete, de Platão, ou o monólogo em Hamlet. Agora considere o Sermão da Montanha ou a resposta que D’us dá a Jó a partir do capítulo 38. E que tragédia grega poderia se equiparar à tragédia narrada nos capítulos 19, 20 e 21 do Livro de Juízes?
 
Citarei, apenas como um exemplo, a narrativa homérica da Guerra de Troia, que começa com as disputas entre os deuses e que, como resultado, a paixão entre Páris e Helena, esposa do rei espartano Menelau, que fugiu com seu amante, desencadeando uma guerra entre gregos e troianos. Encontramos nessa narrativa, combates épicos, atos heroicos e intervenção divina. A queda de Troia foi o desfecho final.
 
A história narrada a partir do capítulo 19 do Livro de Juízes, finalizando no capítulo 21, fala de uma mulher infiel, a concubina de um sacerdote levita que a expulsou depois da sua traição, devolvendo-a para a sua família. Um tempo depois, arrependido, o levita vai buscar a sua concubina na casa de seus pais. No caminho de volta para casa, a concubina foi violentada e morta por um grupo de homens da tribo de Benjamim. Essa tragédia desencadeou uma guerra sem precedentes, que quase levou a tribo de Benjamim à extinção, sendo morta todas as mulheres e restando apenas 600 homens. E a história continua. Houve batalhas épicas, atos de bravura e intervenção divina.
 
Por que uma é considerada alta literatura e outra não?
 
Em ambas as narrativas há profundidade temática, com temas universais sendo abordados. A complexidade de personagens, individuais ou coletivos, também são encontrados nas duas narrativas. O estilo literário é diferente, porém, o que é diferente em uma narrativa não desqualifica outro estilo. E cada narrativa tem seus recursos literários válidos. Infelizmente, o espaço é pouco para dissertar com profundidade e detalhes relevantes.
 
Na obra Mimesis, no primeiro capítulo, A Cicatriz de Ulisses, Erich Auerbach relata a história do sacrifício de Isaac e todo o peso emocional e psicológico de Abraão que, ao obedecer a D’us sem questionar, leva o seu único filho em uma jornada de três dias, com a finalidade de, no terceiro dia, sacrificá-lo ao D’us Criador de todas as coisas. Fica evidente a comparação de Auerbach entre a narrativa explícita e direta de Homero e a narrativa bíblica que é cheia de ambiguidade e lacunas, além de ser alusiva.
 
A narrativa de Homero, presente no Canto XIX, na qual Ulisses é reconhecido pela velha ama Euricléia, ao ver a cicatriz na coxa do herói. Apesar de ser uma cena emocionante, ela acaba sendo superficial pelo próprio estilo narrativo do autor, que entrega tudo de graça para o leitor, que não passa de mero agente passivo. A narrativa bíblica, no entanto, exige participação do leitor para preencher as lacunas e interpretar as alusões carregadas de sentidos espirituais e simbólicos profundos. Por exemplo, o sacrifício de Isaac já estava prefigurando o sacrifício de Cristo, Filho do próprio D’us.
 
Antes de continuar, pontuo que Auerbach teria sido mais assertivo se tivesse feito uma analogia da cicatriz de Ulisses com a ferida cicatrizada na coxa de Jacó. A cicatriz de Ulisses, causada na sua juventude por um javali, serviu apenas como uma marca de bravura e coragem, o que é pouco, se comparado ao peso simbólico da ferida na coxa de Jacó, feita por um anjo ou, segundo algumas interpretações, pelo próprio D’us, depois de passar uma noite lutando com a própria divindade. O javali, um porco selvagem, representa um animal impuro na visão judaica; a casta de demônios, expulsa por Jesus, do homem gadareno, pediu permissão para possuir uma vara de porcos. O javali pode simbolizar o paganismo da religião grega, deixando a sua cicatriz na cultura ocidental.
 
Jacó, por outro lado, foi ferido por algo divino, sobrenatural, e recebeu uma cicatriz também por sua coragem, mas também por fé. Essa ferida foi uma aliança com D’us, algo tão profundo que ele precisou receber um novo nome, uma nova identidade; não mais Jacó, mas Israel, que significa “Aquele que luta com D’us”. A cicatriz de Jacó mudou a história não apenas de um homem, mas de todo um povo.
 
Outro ponto é que Abraão cumpre literalmente a oração do Pai nosso, especialmente no verso “seja feita a Tua vontade assim na terra como no céu”. A pergunta é: como é fazer a vontade de D’us no céu e quem faz a Sua vontade no céu, já que a vida do homem se faz na terra? Os anjos são aqueles que fazem a vontade de D’us no céu. Como essa vontade é feita? Os anjos obedecem sem questionar. Assim fez Abraão ao responder o pedido de D’us com “Eis-me aqui”.
 
Não importa se subirmos os morros do Rio ou se entrarmos nas favelas de São Paulo, ou nos rincões nordestinos, ou ainda no estado do Amazonas, entre os ribeirinhos. Podemos pedir para qualquer uma dessas pessoas, em qualquer um desses lugares, para recitarem algum soneto de Shakespeare, algum canto de Dante, algum verso de Virgílio ou mesmo Camões, depois peça para recitar algum verso do livro dos Salmos. Há uma grande chance de ouvirmos, com muito mais frequência, os versos do Salmo 23 ou 91.
 
Ainda assim, apesar de estarmos falando de um conjunto de livros reunidos, com o título Bíblia, essas obras não são consideradas como merecedoras de um cânone, acredito, por mero preconceito.
 
Uma poética da transgressão
 
Hoje, em nossa contemporaneidade, além dos sentimentalismos mal expressados, temos a excessiva contaminação ideológica/partidária, a exacerbação do “eu” e filosofias que não levam a nada, além da busca por uma transgressão a qualquer custo e sem a compreensão do mundo e da realidade circundante; é preciso destacar que os elementos transgressores de 100 ou mesmo 50 anos atrás, tais como a homossexualidade e suas variantes, a criminalidade, o consumo de drogas, vivências ou mesmo religiões alternativas ou marginalizadas, tudo muito romantizado, muito gourmetizado, foram assimilados, adotados e oficializados pelo atual establishment. Somente uma poesia e uma literatura cristocêntrica poderão representar a marginalidade sendo, por natureza, politicamente incorreta; atestada biblicamente na passagem do Evangelho de João (15:18-21).
 
“Se o mundo os odeia, entendam que ele me odiou primeiro (…) Se eles me perseguiram, também perseguirão vocês”
 
A transgressão, em um mundo cada vez mais secular, antropocêntrico e selfiado, poderá se manifestar verdadeiramente através das escrituras sagradas. Não há transgressão em uma poesia ou literatura luciferiana, pelo simples fato de todo o sistema mundano já pertencer ao maligno — é preciso entender que “poesia luciferiana” é a expressão anticristã através desse gênero literário, como de qualquer gênero artístico.
 
Houve algumas tentativas de defender a fé através da literatura. Aqui no Brasil temos Jorge de Lima e Murilo Mendes, que na obra em conjunto intitulada Tempo e Eternidade, tentaram, ao seu modo, Restaurar a Poesia em Cristo. Mas você só pode restaurar a Poesia em Cristo, se você abandonar os modelos greco-romanos. E o poeta inglês William Blake, até onde sei, foi o primeiro poeta ocidental a renegar o modelo greco-romano, como bem testificou no prefácio de sua obra Milton:
 
“Não precisamos de modelos Gregos nem Romanos se com justeza & verdade seguirmos a Imaginação, esse Mundo de Eternidade em que vivemos para sempre em Jesus nosso Senhor”
 
Temos Northrop Frye que, apesar do seu formalismo, contribuiu ao trazer o debate canônico para a academia; debate que hoje, mais do que nunca, se faz necessário e com a devida profundidade.
 
Invocações
 
O Logos, entendido aqui como sendo a razão do homem natural, é limitado pelas leis do tempo e espaço, fixado na terceira dimensão. O acesso a Árvore da Ciência do Bem e do Mal formatou e limitou a mente humana aprisionando-a na dimensão tridimensional, onde não há iluminação, mas a densidade do próprio Logos, ou seja, da própria razão do homem natural, com seus conflitos e antagonismos. Lembrando a carta de Paulo (1 Coríntios 3:19) — Porque a sabedoria deste mundo é tolice diante de Elohim, porque está escrito: Ele apanha os sábios na própria astúcia — aludindo ao livro de Jó 5:13. O Logos Iluminado só se realiza em Yeshua, o Verbo Encarnado.
 
As potências poéticas gregas, para citar os mais importantes, são: Homero, Hesíodo, Safo, Ésquilo e Sófocles. Entre os romanos podemos citar Catulo, Horácio, Ovídio e Virgílio. E tais poetas e prosadores só podiam invocar as Musas. E fomos ensinados, o nosso imaginário foi moldado, a continuar evocando tais entidades ainda que apenas no plano simbólico, metafórico, e que apenas nesses termos se poderia fazer poesia inspirada.
 
Considerando Mnemosýne (Memória) Tempo e Ser, filha de Zeus, suas filhas só poderiam ser as nove Musas que, com o tempo, passaram a ser relacionadas com as artes; da música e, posteriormente, como divindades da primavera e inspiradoras da poesia, além das demais artes e das ciências. Com o passar do tempo foram ganhando mais importância e se tornaram deusas, passando a serem adoradas; responsáveis pela inspiração humana. Destaco aqui as Musas da Poesia, gênero a qual estamos tratando. Temos, então, Calíope, Musa da poesia épica e também da eloquência; Érato, Musa da poesia lírica e amorosa, e Polímnia, Musa da poesia sagrada.
 
Era comum a invocação dessas entidades, dessas deusas, por parte dos poetas, e dos artistas em geral, antes de iniciarem os seus trabalhos, para que elas os agraciassem com inspiração divina, ou seja, potencial criativo não humano.
 
E se compararmos o reconhecimento entre os dois cânones, pela cultura ocidental, o cânone bíblico não passa de um fino verniz. Isso é o que se tornou norma. Sem contar que, em um mundo cada vez mais secular e antropocêntrico, entrando na Era transumana, nem mesmo a dimensão religiosa das escrituras sagradas são toleradas, sendo rebaixadas à mitologia ou, pior, à mera crendice.
 
Na realidade, a Era moderna sobrepujou até mesmo a influência das Musas no plano religioso, sobrando apenas a ideia metafórica da musa. O Modernismo, marcado pelo avanço tecnológico e científico, colocou o Homem no centro de tudo; todo o potencial criativo passou a ser uma capacidade única e exclusivamente humana.
 
Todo o secularismo moderno, o anticristianismo e a própria apostasia das igrejas, em grande parte é devido às influências do cânone greco-romano; e é sabido que, mais do que formar o nosso pensamento, a literatura forja o nosso imaginário.
 
Quero acrescentar que, reconhecer e resgatar o cânone judaico-cristão, seja por autores crentes ou ateus, é um ato de ousadia e amor pela própria literatura, uma vez que o cenário atual apresenta, de um lado, uma literatura cega em sua militância e engessada pelas suas ideologias, e que só contribui com suas demandas políticas. E do outro lado temos uma literatura aguada, morna, inofensiva, quando não vitimista, gestando autores que certamente têm grandes potenciais, porém, já nascem pré-moldados por modelos hegemônicos desgastados e por narrativas que retroalimentam a exacerbação do ego e que também não contribuem em nada com a arte da escrita e do pensamento. Tais sintomas, creio, é em grande parte devido à ausência de escolas ou movimentos literários legítimos.
 
Fazer literatura genuína debaixo do espírito do nosso tempo, que nos ilude com simulacros pós-modernos diante do narcisismo vazio das redes sociais, é como caminhar sobre as águas. Não basta dar o primeiro passo, é preciso ter fé em algo muito maior, infinitamente maior do que o nosso próprio umbigo.

REFERÊNCIAS
 
BLAKE, William. O Casamento do Céu e do Inferno. Edição bilíngue. São Paulo. Nova Alexandria. 1993.
 
FRYE, Northrop. O Código dos Códigos: A Bíblia e a Literatura. Primeira Edição. São Paulo. Boitempo Editorial. 2004.
 
GUÉNON, René. O Esoterismo de Dante. 2º edição. Lisboa. Editora Vega
 
AUERBACH, Erich. Mimesis. Primeira edição em Língua Portuguesa. São Paulo. Editora Perspectiva S.A. 1971
 
LIMA, MENDES, Jorge de, Murilo. Tempo e Eternidade. Edição da Livraria Globo. Porto Alegre. Livraria Globo. 1935.
 
DERECH, Tsadok Ben. Peshitta: O Novo Testamento Aramaico [s.l.:s.n., 2023]
 
STERN, David H. Bíblia Judaica Completa [s.l.:s.n., 2021]
 
BLAKE, William. Milton. Edição Bilíngue. São Paulo. Nova Alexandria. 2014.
 
DERECH, Tsadok Ben. Peshitta: O Novo Testamento Aramaico [s.l.:s.n., 2023]

Mateus Machado é anti-poeta, escritor e ensaísta, formado em gestão ambiental pela Faculdade Prof. Luís Rosa (Jundiaí). Em 1997 foi cofundador e diretor de cultura da AEPTI (Associação dos Escritores, Poetas e Trovadores de Itatiba-SP). Participou em antologias e na revista literária Beatrizos (Argentina), vencedor de prêmios literários, entre eles, Ocho Venado (México), e um dos finalistas do Mapa Cultural Paulista (edição 2002). Entre 2017 e 2018, foi aluno de música clássica indiana com o citarista, escritor, tradutor e poeta Alberto Marsicano. Autor dos livros publicados Origami de metal (poemas, Editora Pontes, 2005), com prefácio do poeta Thiago de Mello; A mulher vestida de sol (poemas, Editora Íbis Líbris, 2007); A beleza de todas as coisas (poemas, Editora Íbis Líbris, 2013), com prefácio de Alberto Marsicano, onde finalizou sua primeira etapa como anti-poeta; As hienas de Rimbaud (romance, Editora Desconcertos, 2018); 17 de junho de 1904 — O Dia que não amanheceu (ensaio, Editora Caravana, 2022), sobre a obra do escritor irlandês James Joyce, e Nerval (poemas, Editora Caravana, 2022), um livro de transição. Em 2023, iniciando uma nova fase no seu trabalho, publicou o primeiro livro da trilogia Poiesis Religare, intitulado YHVH, pela UICLAP, através de autopublicação. Agora, em 2025, está publicando o novo livro de poemas O Evangelho segundo as HQs, pela Editora Mondru, iniciando a sua segunda trilogia poética. Atualmente está finalizando o livro Um bode para Adonai — outro para Azazel. É autor do canal de literatura Biblioteca D Babel no YouTube.

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Respostas de 25

  1. Ótimas reflexões. O resgate do cânone, do cerne judaico-cristão que nós modelou urge; e mais, arrancá-lo das bordas, do difuso, e con-centrá-lo em seu lugar de direito e responsabilidade, o centro de nossas vidas e escritas, é fundamental. Somos os novos marginais? E sempre, e para sempre.

  2. Obrigado, meu amigo Sammis, pelas palavras. Creio que se faz necessário abordarmos esse tema e comoreende-lo, para que haja um resgate e reconhecimento do cânone literário judaico-cristão, principalmente para o autor cristão comprometido com a literatura. Há muito para se fazer. Como disse o grande Mestre: “A seara é grande, mas poucos são os ceifeiros”

  3. Mateus, gostaria de lembrar que literatura é laica, um desenvolvimento do pensamento racional, uma conquista do racionalismo originado, sem duvida, na Grécia antiga. O carro de apolo segue na formatação do humano até atingir a sequência principal e, então, irradiar. Está mais para espírito santo do que matriz e filho. Não sou cristã, não tenho empatia com o cristianismo, tenho formação marxista e considero pregação tão nociva quanto papo esquerda sem noção. Não nos use para pregar, uma coisa é você expor tua forma de pensar, de sentir, de ser. um direito que te assiste. Inclusive está se expondo em terreno infértil porque não existe muita receptividade para o cristianismo em meios mais intelectualizados, e vocêr sabe disso.

    1. Jandira, obrigado pelo comentário. Discordo dessa ideia de uma literatura laica, absolutamente neutra, já que a própria laicidade garante a liberdade religiosa e o respeito a todas as crenças, ou seja, a literatura pode acolher qualquer crença ao ser expressada artisticamente. Ser laico não é negar ou aceitar como uma obrigação, mas assegura que qualquer pessoa posso expressar a sua crença. Historicamente, se observarmos os grandes textos antigos de qualquer cultura, fica claro a importância de suas crenças expressadas em textos poéticos e literários de forma geral; como dito no meu texto, o que chamamos de mito, para os antigos era religião. O processo e secularização a partir do Renascimento, tirou a literatura do seu eixo e identidade originais, ou seja, a centralidade da religião, seja pagã ou judaico-cristã, fonte cultural importante para aqueles povos. Daí advém essa ideia moderna de uma literatura “laica”, “neutra”. O desenvolvimento racional, que ganhou força ja nos primórdios da era moderna, nos trouxe até aqui, como o homem moderno não suportando as próprias contradições. É a mesma racionalidade da bomba atômica, do holocausto e de regimes pavorosos que proliferaram no início do século XX; nazismo, comunismo, fascismo… O carro de Apolo está cumprindo bem o seu papel, digo, literário. E meu texto tenta apontar a hegemonia de Apolo dentro de um cânone totalitário. E a ideia de um resgate do cânone judaico-cristão é justamente para enriquecer o debate e mostrar um alternativa além das ideias cânonicas greco-romanas que desaguaram em nossa modernidade. Não ter empatia pelo cristianismo é um direito seu, e isso não se discute. Agora, está equivocada em achar que estou usando vocês para pregar religião. A intenção do texto é justamente discutir ideias dentro da literatura e, apresentar a bíblia dentro de uma perspectiva estética/literária, não é proselitismo. Justamente por ser terreno infértil é que tais ideias devem ser discutidas com honestidade e maturidade, para que a literatura contemporânea não fique embotada das ideologias e racionalismos modernos. Meu ensaio está, acima de tudo, a favor da própria literatura, cujo terreno sempre foi fértil para o debate de ideias antagônicas.

      1. Com isso eu concordo. Mas, que fique claro, eu tive a mesma posição com aqueles que tentaram me usar para papo ideologico, fazendo uma invasão de espaço para impor não o pensamento, mas, uma restrição ao pensamento. A mim parece que você está sacrificando uma inteligência brilhante por dogmas. No teu ensaio sobre Ulisses já ficou claro pela ênfase na figura do Pai, cristianismo, patriarcado, estava transparente. Estou acostumada com intelectuais cristãos, alguns foram padres ou seminaristas, que fazem literatura sem ser explícitos quanto a crenças, está implícito na forma de escrever, na própria amplidão da cultura (estudaram muito). Publiquei, ontem, o Adriano Wintter, esteve em seminário. Grande poeta, do tipo que ensinou a muitos. O cristianismo para mim é culpa, um antítodo contra a psicose, característica da maioria dos governantes. Também é água, emocional, acolhimento, recolhimento. Não é o estar humano, é o meio do caminho.

        1. As suas respostas são a expressão de sua visão ideológica. E não invadi o espaço, fui convidado. E, honestamente, não sou eu que está tentando restringir o pensamento aqui, até porque, em nenhum momento critiquei o marxismo, como sendo sua posição ideológica, mas você faz questão de pontuar suas críticas com relação a religião, em especial, ao cristianismo, deixando clara a sua opinião sobre cristianismo ser culpa, antídoto…trazendo, inclusive a lembrança do ensaio sobre Ulisses em que uso os termos Pai, cristianismo, patriarcado…e completou dizendo que estou sacrificando a minha inteligência por dogmas. Sério? Não bastou as referências literárias de autores eruditos importantes que destaquei no texto? Ou seria mera birra marxista contra o cristianismo? Qual o problema de ser explícito ao tratar de literatura bíblica como expressão estética, ou só é capaz de ser implícito autores que estudaram muito?

          1. Você foi convidado como ensaísta, não como pregador. Disciplina, pai, patriarcado. Ah, mais então um processo evolutivo, uma saída das comunidades tribais cheias de deuses e alquimias não controladas. O processo ocidental de criação do navegador ou consciência é um processo mental, apolíneo, forma e abstração. Claro que a culpa e o recolhimento, a alma, estão dentro, uma continuidade. Mas, veja bem, em muitas espécies um macho dominante usa a lei do braço para domínio e também para proteção do grupo, dandos umas porradas, umas mordidas aqui e ali, porém, enfim, na selva a vida é assim. Pode-se fazer a contenção com a palavra e a punição por disciplina e gregos, cristãos, mulçumanos, marxistas, tudo entra nesse bolo. E, um costume muito arraigado em humanos e primatas é a formação de grupos para o poder, para atingir um objetivo. Tua saudação ao Sammis me causou essa impressão. Já vi a mesma coisa em marxistas e pseudo esquerda. A poesia representa o material não dominado pela consciência, assim como a arte.

        2. Então Jandira. Mais uma vez me acusa de pregador, parece-me que é o que está fazendo ao tentar me refutar. Honestamente, não creio que tenha entendido o texto, rejeitando-o apenas pelo conteúdo e por uma defesa de um cânone judaico-cristão, já existente, porém relegado à esfera religiosa, não reconhecendo assim o seu valor estético/literário, por mero preconceito. Prova é que, na falta de bons argumentos, volta a se repetir com termos que usei no ensaio anterior, e que não tem relação com o presente texto. Processo evolutivo, aldeias tribais…processo mental apolíneo, muita abstração que não diz nada. No texto coloquei de forma simples que: aquilo que nós, modernos, chamamos de mito, os antigos, gregos ou não, chamavam de religião. Repito, a racionalidade que você tanto defende nos trouxe até a bomba atômica, às ideologias catastróficas, ao lobby da ciência, das indústrias farmacêuticas e da guerra, ao adolescente de 14 anos que mata uma família inteira por causa da namorada, e assim por diante. Cadê a evolução racional apolínea? E não é nem disso que se trata o meu texto. Deixe claro que um resgate de um cânone ignorado, pode ser enriquecedor para a própria literatura, em que todos ganham, inclusive leitores. Ficar de picuinha com coisas bobas: “patriarcado”, “macho dominante”, “punição”, “primata”, não enriquece um debate sério e necessário.

          1. Volto a repetir, Mateus, eu achei mais para pregação. Te admiro muito, fiquei muito impressionada com teus poemas e o ensaio sobre Ulisses. Este ultimo lógico e simples. Bem menos com este,claro que um resgate é um resgate, pode ser interessante. Porém, a minha impressão não foi a de um pensador questionando modos e métricas e formas e estilos. Foi a de alguém fincado em uma via religiosa querendo impor e evangelizar. Morei em Angola e vi o que o poder faz com militantes. Transforma-os em senhores completamente esquecidos da militância. Vi a mesma coisa aqui em próximos ao poder. Não defendo ninguém por proximidade ideologica. Acredito em liberdade e não em liberdade tendenciosa. Estamos em uma ponte, vai ser feita uma travessia. É muito difícil. A praxis do homem é desnudada, esvaziada de símbolos, de sonhos, de paz. Árida. Querer encher de água com a beberagem cristã é enquadramento do complexo para a simplicidade. O complexo é a dor, a dúvida, o preparo para avançar em ramificações neurais, sensitivas, sensoriais e, dentro delas, partir para a construção de uma nova grade que as abarque, as sustente. Muitos ficarão de fora, não é uma guerra de ideologias, de território, de ter razão, é praticamente uma guerra de espécie. E é decidida, essa guerra terrível, pelo objetivo e não pelo subjetivo. Vamos esvaziar matéria, nossos descendentes, claro, até tomarmos forma, alcançarmos levitação, capacitação de movimento por entre a fundação que sustenta a matéria. Como as estrelas, perdem matéria, adquirem forma e então irradiam. Sem culpa, sem ódios, sem ilusões. Sabendo, espera-se, a enfim configurar e praticar o espírito. A ponte está logo ali, quer entrar na água, todos precisam de muito líquido, mas, quer se encharcar nela, ok. Uma pena, vai vitimizar uma inteligencia.

        3. Bom, o seu “achar” é suporte para dúvida. Em todo caso, como vc está com esse pensamento fixo, ao me ver e me tratar como um pregador, só posso lamentar. Estou aqui para debater literatura por amor a literatura. E minha visão sobre o teor estético/literário da bíblia não faz de mim um pregador. E o presente texto é prova disso, mas se suas vivencias passadas a traumatizaram e, por isso, não tenha mente aberta para aceitar ideias antagônicas, paro por aqui, por respeito a você, a sua idade e condição.

          1. Você não é muito preparado para ser contrariado. Eu sei que você é um pregador e você também sabe. Isso finaliza as bobagens. Ter formação marxista e matemática não me impede de acompanhar os nódulos criados nesses tempos. Eu não me traumatizei nas minhas vivências passadas, o que me traumatiza é a ignorância seja lá qual seja o teor ideológico dela. Isso me espanta e muito. Se veio falar de literatura então, ótimo, fale de literatura. Um escritor cristão? ok, mas aqui não é plataforma para avisos de fim de mundo (eu também li o ensaio originbal).

        4. “Você não é muito preparado para ser contrariado”? Sério? Olha o exemplo que você está dando. Que bom que leu o ensaio original, isso prova que aceitei, de imediato e de muito bom grado, todas as modificações sugeridas e os cortes para a publicação do texto, e agradeci as sugestões de mudança! Quem não gosta de ser contrariado?

  4. Parabéns pelo texto de grande erudição. Tenho interesses em ler Frye em breve. A crítica subversiva é transgressão contra o zeitgeist me fez pensar que a contracultura virou cultura e a cultura, uma contracultura. Como um movimento de pêndulo, devemos resgatar as raízes literárias do nosso próprio cânone ocidental. Em tempos de secularismo, o hibridismo canônico só é mais uma forma de relativismo. Boa leitura, seguimos fortes na luta!

  5. “Conheço as tuas obras, que não és frio nem quente. Quem dera fosses frio ou quente! Assim, porque és morno […], estou a ponto de vomitar-te da minha boca.” — Apocalipse de João, 3:15-16

    Este versículo duro e enfático do Apocalipse não deixa margem à tibieza. A morna neutralidade é, aqui, objeto de repulsa divina. Há quem leia nesta imagem uma exigência ética absoluta: a rejeição da ambiguidade, a condenação da falta de compromisso, a repulsa pelo meio-termo. No entanto, ao confrontarmos esta passagem com a ética de Aristóteles, particularmente a que se encontra na Ética a Nicómaco, somos levados a uma reflexão mais complexa. Para o filósofo grego, a virtude reside justamente no meio termo, não como mediania indiferente, mas como equilíbrio ativo entre os extremos. É o caso da phronesis habitualmente traduzida como sensatez, moderação, prudência ou temperança — uma virtude que regula os prazeres e paixões sob a luz da razão.

    A leitura do Apocalipse, à luz desta filosofia antiga, pode parecer incompatível com a ética aristotélica. No entanto, essa tensão revela precisamente um ponto fértil de análise: até que ponto o cânone cristão está, ou não, impregnado por influências pagãs? A resposta está longe de ser unívoca. Se, por um lado, o cristianismo rejeita o relativismo ético e proclama uma moral fundada na revelação divina, por outro, é inegável que a sua formação doutrinária e simbólica resultou de um longo processo de absorção e transformação de conteúdos religiosos pré-cristãos.

    É neste ponto que o pensamento de Mircea Eliade se torna esclarecedor. No seu Tratado de História das Religiões, Eliade observa que as religiões arcaicas não são, por natureza, ortodoxas ou exclusivistas. Pelo contrário, operam por sincretismo orgânico, fundindo mitos, símbolos e práticas para responder a novas necessidades espirituais. Em vez de substituir brutalmente os sistemas anteriores, as religiões tradicionais assimilam-nos, reinterpretando e reconduzindo-os a novas formas do sagrado:

    “As religiões arcaicas não conhecem propriamente uma ortodoxia doutrinal; são sincréticas por natureza, fundem símbolos e mitos ao longo do tempo para responder a novas necessidades rituais.” – Mircea Eliade, Tratado de História das Religiões.

    Tal visão contraria a ideia de que o cristianismo nascente teria simplesmente apagado o passado religioso pagão. Ao invés disso, muitas das suas imagens, festas e até mesmo virtudes podem ser lidas como sínteses de sistemas anteriores, num processo que lembra a célebre tríade hegeliana: tese, antítese, síntese. A religião cristã, neste sentido, seria não apenas uma ruptura, mas também uma síntese histórica, onde antigas sabedorias são reelaboradas sob nova luz.

    Portanto, o versículo do Apocalipse, tomado isoladamente, pode parecer intolerante com o equilíbrio ético.

    Mas no contexto mais vasto da formação do cristianismo, da filosofia clássica e da história das religiões, torna-se evidente que o pensamento religioso — tal como o humano — avança quase sempre por integração, mais do que por eliminação.

  6. Expor um resgate das tradições, de mitos, de teologias é sempre arriscar-se a discussões mais calorosas. Os ânimos se disseminam e se afloram, o que é natural e criativo inclusive ao nosso processo de criação artística (como leitores e como escritores). Afinal, pensar desencadeia outras formas de ver, de sentir e de crer. Ficar em cima do muro não escaparia da própria igreja, imperdoavelmente dos convertidos a estarem em cima do muro, principalmente em contextos de fé. Eu, por exemplo, fiquei curioso pra ler na íntegra “Tempo e eternidade”, assinada por dois autores de minha predileção, Jorge de Lima e Murilo Mendes. Fugindo de minhas sensíveis prolixidades, saio da leitura de “O principado greco-romano e o resgate do cânone judaico-cristão (Uma introdução)”, com uma sede de conhecer vários livros da referência bibliográfica e de interagir mais com o ensaio no meu exercício de releituras. Viver, este exercício de nossos equilíbrios e contradições, é estar (se) relendo sempre! O ensaio de Mateus Machado é rico, profundo, cheio de inquietações espirituais que propõem nossos também progressivos cuidados. Que assim sigamos!

    1. Oi Geovane, obrigado por suas observações sempre bem ponderadas e assertivas. Creio que um texto literário que traga reflexão, debates, é bom sinal. Ficaria muito frustrado se não fosse assim com o presente texto. Não ficar em cima do muro, paga-se um preço, a diferença é a escolha que fazemos. Obrigado pela leitura atenta. Que assim sigamos!

  7. Oi Luís, obrigado pelo comentário. A sentença apocalíptica citada, refere-se apenas no contexto apocalíptico, ou seja, como juízo para o fim dos tempos. Ao contrário de outros livros bíblicos, como o livro de Provérbios, em se que encontra certa consonância com a ética aristotélica e com outras vias filosóficas/religiosas, como o caminho do meio dos budistas. Aliás, a ética judaico-cristã, faz parte da cultura ocidental desde as leis mosaicas.

    Mircea tem razão ao falar do sincretismo cristão, partindo do nascimento e da estruturação da igreja católica romana. Exemplo de sincretismos encontramos nas festividades como Natal e Páscoa; o completamente fora do contexto original, judaico. Mas, Mircea, como outros pensadores modernos, se equivocam a colocarem tudo na esfera dos Mitos; obviamente, isso nos levará a outro debate, mas a ideia central seria: não temos um Apolo, um Prometeu ou um Thor histórico, mas as evidências históricas da existência de Jesus são irrefutáveis, bem como de muitos personagens bíblicos.

    Creio que, para sermos mais exatos, não há um cristianismo, mas cristianismos. A reforma protestante excluiu muito dos elementos pagãos adotados pela igreja católica, por exemplo, só não conseguiu uma ruptura definitiva com o pensamento greco-romano na formação de suas teologias. Toda a narrativa bíblica é cercada por uma luta para romper com o paganismo dos povos pagãos. Isso foi acentuado com Abraão, para voltar ao monoteísmo pós-queda, precisou se afastar da sua parentela. E, em cada livro, a busca por essa ruptura, tendo agora como modelo Abraão, está evidente, sendo parte da trama principal das escrituras; o povo se voltando aos velhos hábitos do paganismo e se afastando de D’us, e sofrendo as consequências, ou voltando-se para a sua fé em um único D’us.

    Obrigado Luís, pelas importantes reflexões trazidas ao debate.
    Infelizmente, todo versículo bíblico tomado isoladamente, seja por cristãos ou não, cairá em equívocos.

  8. A biblioteca que é a bíblia é por si um cânone, um cânone que é sucesso de público. Não sei se é necessário que se “misture” esse cânone judaico-cristão com o cânone literário que vemos ser amplamente defendido, muito menos que se substitua. Se, como comentou a Jandira, “não existe muita receptividade para o cristianismo em meios mais intelectualizados”, isso se dá pela natureza desse meio e das pessoas que o compõem. Isso é, quem busca conhecimento no homem e o coloca como centro naturalmente vai valorizar a produção que coloca o homem no centro. Quem busca o conhecimento de Deus naturalmente vai se reconhecer e vai ser mais capaz de ver as qualidades num texto que coloca Deus no centro. De que adiantaria ver o meio literário discutindo textos cristãos? A verdade é que a alma busca aquilo que se assemelha a ela. Se o que se defende como literatura é predominantemente pagão é devido ao mundo ser assim. Felizmente muita alma se deleita com os livros escolhidos para compor a bíblia, mas não podemos querer que sejam todas as almas. Fazemos escolhas, existindo uma entidade chamada livre-arbítrio ou não, fazemos escolhas. Os sábios escolherão ouvir os sábios. Os ímpios escolherão ouvir os ímpios.

    1. Bem lúcido e direto ao ponto, Rudi. Não sei se quero ouvir os ímpios. Também não sei se posso vir a me interessar por algumas passagens da bíblia. Sei que a tela vai abrindo e fugindo do estabelecido pelo científico, pelo religioso e pelo marxismo. E abro meu olhos.

    2. Oi Rudi, obrigado pelo comentário. Concordo com o seu primeiro verso, a bíblia é um best seller, amado e odiado, mas não ignorado. Preciso esclarecer algumas coisas. Primeiro, o ensaio, em momento algum, fala em misturar o cânone judaico-cristão com o cânone hegemônico, greco-romano, mas trata-se de um resgate e reconhecimento das escrituras como cânone pelo rico teor estético-literário, como um cânone, digamos, alternativo. Como respondi a Jandira, digo a você que por ser um terreno infértil, aí é que a ideia deve ser debatida, a não ser que você prefira um cenário literário morno, sem questionamentos ou novas ideias. Tal comentário, que você trouxe, na verdade é um disfarce, pois ele carrega aquele velho preconceito que, bíblia é pra gente ignorante, por isso não ser recebido em ambientes “intelectualizados”. Pobre Dante, hoje seria um incompreendido. Sobre a centralidade do homem, como me referi no texto, começou com o Renascimento e seguiu adiante, resultando no homem moderno/pós-moderno, que só enxerga o próprio umbigo e é arrogante o bastante para achar que suas ideias são o resultado de sua evolução e do mundo. Um ateu, um agnóstico, inteligente reconhece as qualidades literárias dos textos bíblicos, achar que somente cristão percebem tal qualidade é puro reducionismo, bobagem. Aliás, a maioria dos cristãos não conseguem enxergar o texto bíblico como obra de valor literário; não sei se há algo mais lamentável que isso. Do que adiantaria o meio literário discutindo textos cristãos? Para essa sua pergunta respondo: Ora, porque textos cristão são obras literárias; creio ter dado provas e referências no ensaio sobre essa questão. Em nenhum momento condenei qualquer texto “pagão”, ao contrário, ressaltei a importância do cânone greco-romano e as comparei com o cânone bíblico.

  9. Belíssimo ensaio, Matheus,

    O ensaio me fez refletir em alguns pontos. O meio onde fomos criados e, em que vivemos, nos ensinam que a tradição grego-romana — como você bem disse — é a fundadora da cultura ocidental. Isso está impregnado de tal forma que, ao escrever um texto literário, terminamos de acrescentar meios literários da cultura pagã. Sou prova cabal.

    Ainda lerei outras vezes o ensaio. Muito obrigado, Matheus. Continue a escrever!

  10. Gostei muito do seu ensaio: me pareceu, ao mesmo tempo, profundo e corajoso – coisa rara hoje em dia. Infelizmente vivemos numa época “rasa”, devido à falta de cultura clássica e ao excesso de dispersão. Cabe a nós, cada um da sua forma, a tentativa de se modificar este cenário. Ensaios como este já são um ótimo começo, pois nos obrigam a refletir sobre a nossa postura em relação à arte – e admitir a nossa covardia perante autores como Dante. Um reflexo disto pode ser uma reflexão sincera sobre novas possibilidades de se escrever uma literatura mais criativa e inventiva rumo a uma outra dimensão da nossa consciência.

    1. Obrigado, meu amigo & maestro Felipe! Que o Brasil possa conhecer e reconhecer o seu trabalho, seja na literatura como na música. Obrigado pelo comentário e pela honestidade. Estamos juntos, ainda que cada um a seu modo, para chacoalhar o cenário literário contemporâneo. Grande abraço.

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