O QUE ESCREVO ATORMENTA O QUE SOU: Hélder Simbad

 
 

 

Fosse o inverso, as palavras envergonhar-se-iam do corpo que as escreve. Seriaprovavelmente a maior ironia do mundo dos homens. Um ser nunca é digno de sermaior  que suas palavras. O que escrevemosé sempre maior do que nós. O que tendemos a ser  é o que a realidade nos pede. Acçõesexteriores. Hiporcrisia. Traição do íntimo. Gestos comedidos. Prisões que seperpetuam até não sermos mais.
 
Na verdade, a verdade é que ninguém chega a Ser. O Ser pressupõe plenitude. Altruísmo.Abstractasacções emanadas pelo inconsciente, passíveis de concretização através da escrita ou mediante debates filosóficos que nos obrigam a Ser.
 
Ser é apenas prerrogativa dos deuses e de alguns homens geralmente incompreendidos. Nesta de não ser, somos tão pequenos ante o que escrevemos e só por isso o quese escreve atormenta. Porque por vezes SE ESCREVE mesmo! Foge da consciência e há uma voz a movimentar dedos e distante de qualquer modéstia e honestidade o individuo apodera-se do que julga ter escrito.
 
O que escrevo atormenta o que sou?! Tema ou pergunta dirigida?!
 
Não sabendo o que sou, digo-vos que o que escrevo pode ser uma voz, animal selvagem que se solta das amarras, buscando vingança. Um dedo apontado a mim, julgando-me, punindo-me, degolando-me por tanto silêncio.O que escrevo é um corpo prostituído ou meu país despido, espremido até ao limite do petróleo com medidas de austeridades que sacrificam os coitados.
 
Escrevo o avesso das coisas e descubro que não sou. Isto me atormenta porque se me abre a real idade objetiva. E descubro-me no que escrevo, escrevendo o meu país e realidades paralelas.]
 
O que escrevo atormenta o que sou porque por vezes o meu país é um silêncio que me intriga, uma forma de ser estranha, um barulho ensurdece dor. Por vezes o meu país, qual espinha de Kakusso grosso ou de lambula das mabundas, atravessa-me a garganta, arranhando tecidos nas cordas vocais e emudeço-me. Mas é ao escrever que melhor grito a zunga dos crocodilos que ensinaram aos homens como acabar com a pobreza, abatendo-se os pobres. E sei que ao escrever, inscrevo-me no livro dos futuros ausentes. Isto me atormenta porque aprendi a amar o corpo anti-Drumond, ‘‘esse detestável, incompleto e desconfortável corpo, tão infenso à efusão lírica.’’, comprovando a autonomia da palavra. A palavra é uma força oculta que se move secretamente. Os artistas das letras escrevem por alguma orientação. Porque há uma força estranha em qualquer tecido palavreado. Um poder, uma forma de vida que se nos revela. Isto é não de atormentar?!
 
Então o que escrevo é o que me mata aos poucos. A nossa secular relação éorgíaca e fundamenta-se em sistemas judiciais cuja balança balança ao som das necessidades instantâneas. Mas são as pessoas do povo e os artistas que revelam esse amor transcontinental. Eu FIZ, vi, sente a força dos actos escritos a atormentar-me. Pode ceifar vidas porque os homens grandes que detêm as miseráveis riquezas da vida comum são pequenos homens, sem honra, os insaciáveis brutamontes.
 
Escrevo o que não cumpro com realismo utópico ou com degradação legislativa. O único útero de África é a eterna direcção de endeusados homens. Retorno calado ao oligarquismo eliminatório. Escrevo os sonhos que se ganham sonhando, e mesmo com a cultura cortada, alongo esperanças vivendo num poeta apátrida, exilado para sempre com os seus textos sobre as formas do poder. A festa marginal das Ilhas indianas, as europas de viagens paradas na ponta dos caminhos. Escrevo-me zangado neste caso dos museus queimados, dos fundos silêncios da ONU e dos livros de recursos humanos para alegar a fortuna dos escritores ou das imagens que me apresentam a geografia dos dias em estado de Alá contra os cristãos de Deus algopoderoso indubitávelmente.
 
O que sou pouco importa, o mais importante é o que escrevo. O que escrevo é o que é, e eu posso não ser o que julgam, isto, de facto, me atormenta.
 
 
Hélder Simbad, pseudónimo de Helder Silvestre Simba André, licenciado em Tradução e Administração; professor de Literatura e crítico literário; prémio Literário António Jacinto 2017 com a obra Enviesada Rosa; Publicou em Portugal, pela Perfil Criativo a obra Insurreição dos Signos. Tem poemas, prosas e artigos publicados em diversos Jornais, Revistas e Sites. É Coordenador geral do Movimento Litteragris.
 

 

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