
Enquanto eu tomo um café preto cedinho de manhã, buscando conectar meu cérebro ao corpo e ao mundo, leio uma notícia sobre uma ciclista que foi fazer uma selfie ao lado de um trem em movimento, em Minas Gerais, e acabou atingida pela locomotiva. A moça não morreu por gentileza do capacete. Nessa história Narciso usava EPI (equipamento de proteção individual). Ainda que diga em entrevistas que não foi a óbito por Deus ter um propósito maior pra ela. O que não é de todo descabido, afinal sabemos que o todo poderoso tem uma estranha predileção por seres que descreem das teorias evolucionistas. Já imagino a moça pregando sua estupidez em algum templo duvidoso e sendo idolatrada por sua insipiência. Ninguém tá imune a fazer besteira, mas acho que seria menos indigno dar um certo crédito ao capacete.
Encaminho a notícia e escrevo dando voz à idosa que mora dentro de mim: Amiga, o mundo tá perdido! Sigo tomando o meu café e lembrando que há um tempo eu li em algum lugar que morrem mais pessoas por selfie do que por ataque de tubarão. Pensa no risco que a moça correu? Antes tivesse ido nadar na Praia de Boa Viagem, mas provavelmente se o fizesse estaria tão distraída fazendo uma selfie que acabaria pisando no rabo de um tubarão e corríamos o risco de registrar uma morte por selfie seguida de ataque de tubarão. Pensa nessa manchete? Pensa nessa selfie? Quantas curtidas teria? Será que seria um viral póstumo?
Passou o dia e o algoritmo, esse sabichão, que sabe mais sobre nós que nós mesmos, me confidenciou que o caso de Minas Gerais não tinha sido o primeiro acidente envolvendo selfie e trem na semana. Uma moça no México teve a mesma genial ideia de fazer uma selfie bem pertinho de um trem em movimento, tão pertinho que o trem bateu em sua cabeça tal qual a ciclista brasileira, mas Narciso mexicano não usava EPI e morreu no local.
É, amiga, o mundo tá perdido!

Malvina de Castro Rosa é de Porto Alegre. Escritora, relações públicas e mestra em design estratégico, publicou os livros As loucas aventuras da guria maluca (crônicas, 2013), Paralelos Cruzados (2021), seu primeiro romance, e Crônicas de um fim do mundo antecipado (2023), no qual reúne crônicas do blog semanal que mantém há mais de quatro anos, www.bomdiasociedademachista.blogspot.com. Em 2024, lançou a coletânea de contos Em nós. Atualmente, é editora assistente na Caravana Grupo Editorial no Brasil e editora-chefe da Caburé, na Argentina, além de conselheira da revista Vinca Literária.
Instagram @malvina.rosa
Respostas de 2
Os narcisos, as selfies, os likes; antes o retrato que batia e a alma aparecia, mas – no fundo – pra quem? Os monóculos têm um tamanho de tristeza e de saudade perdida e às vezes matam.A moça salva pelo capacete, a outra moça que não teve a mesma sorte. As fotos nas paredes e as fotos sem paredes.. Longe de comparações, os corpos do tempo se enroscam numa música, numa dança levadas pelo trem inocente, indiferente ao capacete e ao tiracolo.
👍 gosto muito (✿ ♡‿♡)