
A fluidez ou
Yudif não aceitava o sofrimento de não ter visto a verdade dentro do frio – pensava-se inadequado ao seu ofício, mas, perfeito à eficácia do mundo. Aprofundava-se no natural rebelando-se à inabilidade em lidar com os outros, como algo meramente inevitável.
O que eram para Yudif as instâncias que lhe aconteciam? Como se adoecesse do seu próprio inverno? Sua personalidade irregular o retinha, mal ou bem, e se sucedia intermitente, em normas descompactadas, fatalmente grandiosas e inerentes à exterioridade. O fervor da terra no alto do monte chegava até sua varanda, num rio intenso e percuciente que o alcançava como uma dádiva.
Uma virtude fatal para Yudif: ser os erros e defeitos de todos os defeitos e erros, sumir e assumir, julgar, compreender pouco, nunca por querer algo diferente do que obtinha – como se adolescesse num arroubo do qual não lhe fora possível fugir nem soubera evitar, mas, que descrevia perfeitamente o espaço em que era mais autêntico, laminável, frente à percepção que lhe auferia os métodos.
Yudif evidenciava-se, paradoxalmente,como estrutura e expressão, ainda que isso lhe fosse incompreensível e brutal, atraindo-o às ignificados, sem que ele percebesse que, ao fazê-lo, também forrava de sentido o seu mundo, reconhecendo que pouco se conhecia.
Ele não dava em resultados enquanto concebia algo que unisse firmeza e emoção; parecia-se a uma simbologia onde a solidez se deixava transpassar pela fluidificação, ousando sem aparentar atrevimento. Por vezes, imaginava ceder à necessidade de uma existência abstrata: a sensação, e que esta teria, em justaposição, a concretude para unificadamente, se contemplarem. A sensação é mais rítmica e a concretude mais durável; a sensação é instável enquanto a concretude definha vagarosamente; ambivalentes, ambas, ante ao que lhes decorre e as rodeia. Se haveria sentido ou ciência nisso? Yudif não atinava.
Ah! Os cortes; não há mesmo como suprimi-los. Os entranhados estranhamentos que sobram nas interlocuções momentâneas. Yudif, ilimitadamente, compunha-se no que, em definitivo, o habitava: o inextinguível papel do sublime[entrar nos anos com ou sem dignidade, numa construção sempre parcial, imaginativa, na revisitação, na inconstância, como se fosse um milagreou malogro] nunca posto antes nos rodopios estelares, vítreos, sempre, para ele.
Que passasse logo o seu talvez e o seu nunca mais. Yudif queria isso, no fundo. E queria com todo seu desespero. Percebia-se na sua fala quase monossilábica: “A arte é uma paixão em si mesma. Meu humílimo acréscimo. Parece contraditório. Descansar para depois dormir.Conheço bem o processo.Céus; estendam-me o sudário dos humildes quando a cristalinidade chegar”!
Disse-lhe então o ferimento que o sol estendera no cordão: “Que sejamos boas sementes e que tudo nos receba com bondade. As fusões do outono são mensagens para que a alma, liquidamente remodelada, reinicie, numa reflexiva espuma, sua indubitável biologia”.
Yudif decantou-lhe enquanto, colado à “Teoria do Octeto”, adentrava no sempre, suportando-se, desenlaçando-se, desapegando-se por inteiro: “Sim. Quando emociona. A arte é arte apenas quando emociona”.
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Mar à Luz do Sol – Aquarela 30x 21 cm – 2015
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Barco e Mar – Acrílica sobre papelão – 30 x 21 – 2016 |
A mulher da capa
Na sobrancelha uma falha, no olho uma fala que desce até o rigor de um horto abstrato tatuado no rosto que contém mais faces e mais olhares.Quantos olhos há no mesmo olho que se molha na fala e na fagulha que escapa da boca num semisorriso?Os lábios proeminentes, o queixo indiviso noutro ângulo logo abaixo, deitado na sombra de outros lábios que, por si, expressam o florescimento na malha insuspeita e circunflexa, a semente sem solo nem origem contendo a floresta toda, a fuligem desbastada da queima para além e para sempre esquecida, estrangeira a qualquer olho que não ouse ir além do que enxerga.“J’ai vu ces couleurs dans mes rêves et je ne sais pas que je n’a pas rêvé quand je les ai vus.”
Está distante do seu pequeno castelo. Aporta numa orla de ausências onde ninguém tem piedade da sua pena. Escasso, quase escuro é o instante que a captura. No trapiche, o serenar dos barcos desertos a embalam. Vê a brisa a invadir a praia. A marítima monotonia se pronuncia sobre os seres completos de beleza e sensibilidade. As ondas rendem as areias como rendas e como redes, constantemente. As pedras são misteriosas na parte que afunda e se funde no verde-azul que as perfilam como filhas, como ilhas de uma solidez absoluta, temporária, inacessível à fundura do mar.
Não há ninguém, nada que reclame ou culmine tão desgraçadamente como a fome das gaivotas na superfície dessas pedras. O dia comemora imune à dificuldade que, para adiante do que o pensamento extravasa, é desconhecida e ordeira, convocada em cada movimento. O gris que ela não evita lhe agride a jovialidade que, em seu interior, se cultiva sem deteriorar-se, porque certa, desculpável e alheia de si. Parecer-se ao que a memória guarda, parece-lhe extremo e difícil. Sua infâmia é um escorrer de ondas e inspirações cujos enredamentos circundam-na como célula e sépala, como última embarcação cujo casco é miseravelmente seu, um ser inverso abrandado em algo que, mesmo esquecido e imperceptível, ainda a envolve e, irrevogavelmente, a vive.
É a mulher da capa orbitando mundos imotivados e irresistíveis que lhe ornamentam as inclinações, o perfil peregrino, expressão econfidencialidade, silêncio e gesto. Olhares para os olhos é tudo o que elapede e não impede: “Parce que je suis mês rêves”.
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IPÊ – OST- 40×40 cm – 2015 |
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Caminhos do Mar – 50×70 cm – OST – 2015 |
O horto das ovelhas perdidas e encontradas
O céu ouve Adamastor.
“Deixa-me elevar às montanhas a leveza da benignidade, a costura fosforescente dos sigilos que sob o pés estremecem. Que as jornadas tenham o obséquio de uma música, como vítrea permeabilidade ao calor dos cascalhos que esse rebanho ostenta, para que, mais humilde, não se torne peçonha entranhada no próprio rebanho. Que haja inverno e que seja útil a lã de ali retirada e que se aqueçam os corpos e os corações. Como no Mettã “amor benevolente”. Permite-me uma nova linha traçada sobre o frio e sobre o alaranjado. E sobre o alaranjado e o frio. Abertos estão os horizontes do que pouco entendo, [o rebanho é agitado] mas intuo ou traduzo. Sem prantear por qualquer coisa que aconteça, ainda queuma única vez. Sem abnegar nada. Deixa-me a verdade subscrita no verde, nas vertigens do verde que a pastagem enlaça abaixo da planície [o rebanho tem fome]. Deixa-me sem fala e sem suturas. Esconda-me o ego e deixa-me as cicatrizes à mostra. Assim saberei que não fui vão. Talvez tolo nesse trabalho irrealizável que me consome. Acalma-me os alfabetos desconhecidos, quiçá eu compreenda o furor cetinoso que se contrai na lisura mais esbelta e mais escrava. [o rebanho exige]. Crava em mim o perfil e o farode um Shelfand ou de um Border Collie [o rebanho bale e tem sede e tem pressa] do pressentir e do improvisar se achares que posso algum dia, almejar o rol dos salmos que salvam. Concede-me o conforto de uma exegese. O metamórfico estado lápis-lazúli, o destemor do susto, a contemplação, a prece aérea e cáustica. Livra-me das caras das religiões de livros que apelam à compaixão como caridade. [o rebanho reclama a demasia de pastores]. Permite-me fazer o que é profícuo e amar a todos os seres, como ser, ainda que não haja perdão e que perdão haja. [o rebanho clama há mais de dois mil anos]. E, se em meu interior, em qualquer ciclo, não se tenha agigantado o meu carinho,foi onde,mais hediondamente, errei. [o rebanho é o todo anunciado]. No um”.
Tere Tavares é pintora e autora de sete livros: Flor Essência (2004), Meus Outros (2007), Entre as Águas(2011), A linguagem dos Pássaros (Editora Patuá 2014), Vozes & Recortes (Editora Penalux 2015), A licitude dos olhos (Editora Penalux 2016), Na ternura das horas (Editora Assoeste 2017). Participou de antologias, jornais e sites no Brasil e Exterior.