Trecho I – Seção “Da Existência”
[…]
Tenho quatro anos de idade ☼
Mas penso que deveria ter mais.
Por que crescer é tão desejoso?
Por que não poderíamos pausar?
Empurrando peças no quebra-cabeças,
Unindo o mundo sobre duas
Esferas: um abacaxi e uma mesa.
O amarelo tem espinhos e brilha.
A mesa que seguro é quente e fria.
O lápis amarelo se compadece e
Se arrisca rente ao papel:
Sentada, imagina e escreve à
Volúpia surgida, descobrindo
Afetos milenares, riscados em
Promessas dos papéis ao vento.
Empurrando a vivência que a ilumina.
Empurrando o lapso que se dissipa.
Na cadeira em que se sentava, intacta,
Como um trono luzindo na palha.
As linhas grossas contornando a face,
A partir da dobra dos dentes de leite.
O cetim da roupa, manchado de suor,
Luzia mais do que o assento em que
Contava as histórias proibidas da
Queimadura verde do maxilar.
Afugentada no amanhecer gotejante,
Avistava no espelho as próprias orelhas.
Sobre o pincel, os cabelos e os remendos
Da toalha rosada seguiam a tempestade –
Expandindo os pontos de nuvens que
Pesavam como marulhados cometas.
“Que barulho é esse?”
O movimento das nuvens
Ressoando o entorno. Os ventos
Sorrindo às portas escancaradas.
“O que o céu faz aqui?”
As mãos inundadas de dúvidas.
“Minha mãe!” Temia.
Mãos na cabeça. Mãos na boca.
Abençoando o trabalho das formigas,
Observando o caminho do tabuleiro.
A cadeira em que saltava o seu corpo,
Pequeno país, cobria os vãos da sandália.
As linhas finas de um sorriso de diastema
Contemplavam no beco das conversas a
Força do que poderia, mas não existiria.
A língua parecia saudar o inverno.
Descendo vagarosa, alimentando
A sacada e os vãos do muro.
Os dedos do pai sobre seus ombros:
“O que aprendeu hoje, filhinha?”
“Me solta, papai!”
Correndo contra o arroubo
Dos minutos, anoitecidos na
Brincadeira de pensar porquês.
Analisando o alto do telhado,
A criança criava anedotas.
Teimosa como as ervas daninhas,
Esparramava no chão suas teorias.
Alisando a pelagem da cachorra,
Tecia uma plantação de algodões.
“Boa noite, senhoras e senhores.
Boa noite-noite!”
Trecho II – Seção “Da Experiência”
[…]
Três décadas e cinco anos de vida ☼
Securas se emulam nos sertões.
Traumático destino da infância,
Frágil instante de uma proibida
Penetração – o abuso relacional
Escorre odioso, definhando o
Raquítico corpo de criança.
Dói a dor do ontem no amanhã.
Dói demolir arquipélagos.
Esboços adormecem no amparo da
Futura inevitável falência –
Na cana, no facão e na foice rente –
Alargando a pobreza em sangrias.
À vida seca, estanque!
À vida, dizem.
Por dentro e por fora, a esganam.
O rio São Francisco se parte em
Duas partes de fogueiras frias –
Não bastou a secura. Não bastei.
No oco chão, em que os retirantes
Rastejam sob frígidas hipocrisias –
Nos mataram ao morrer, soturnos.
Nos mataram
Alagoas, Bahia, Ceará,
Paraíba, Pernambuco, Piauí,
Rio Grande do Norte e Sergipe:
Mas o sertão ’inda resiste!
“Morrer mais, morrer forte!”
Riobaldo esparramado no chão.
Riobaldo, o menino e seu cão.
Caçoando dos porcos e das fivelas.
Clamando ao diabo que o carregue
Da parva fome e da lida materna.
O chão duro molhado de Minas a Bahia.
A jagunçada parece ter voz e cria.
Riobaldo se compadece e cresce.
Partindo, pisa caatingas e desce:
“Respirar o sonho no oco sono,
Cruelmente ser um nunca mais.
Nunca mais: um adeus e ponto.”
Joca Ramiro. Diadorim. Zé Bebelo.
Hermógenes. Ricardão. Medeiro Vaz.
Nhorinhá. Quelemém. Otacília –
Prosseguem, perseguem a romaria.
Cabeças degoladas, rasgadas na
Vontade de lumiar o vazio, não
Dão conta. O pacto de seguí e
Meiorá se ergue como o diabo –
Esvaecendo no diacho da fala.
Riobaldo, um rio partido.
Bradava seu grito após construir as
Queixas de um povo calcinado,
Povoando os finos elementos:
“O diabo num existe, num há!
É o que eu digo, e se for…
Existe é o bicho humano.
Pior que calo na dor!”
Morreu rindo Riobaldo.
Mas as caatingas não morriam.
Trecho III – Seção “Da Extensão”
[…]
Está grande. Está longe. Está lá.
A vida que eu gosto de inventar –
Menino, menina, mulher, homem,
Não-binário, travesti, transexual.
A vida que eu gosto de inventar –
Olhos, mãos, buços, bicos, bocas.
Órgãos se inflamando e cheirando
A feiura de tudo o que é meu:
A vida que eu, enfim, inventei.
Me chamam de ceifadora –
Deviam me chamar de mar.
Azul, azul, como os oceanos.
Me chamam de ceifadora –
Deviam me chamar de amor.
Azul, azul, como as transas.
Sou a Morte, ao seu dispor!
Vastidão. Precisão. Altar.
Memória inerente e remota.
Distorção do centro infindável.
Ignota dilaceração que a
Humanidade jamais tocará.
Ludíbrio que se prenuncia:
Quando não havia o tempo,
Quando não ardia o sol,
Quando não partiam aves,
Quando não construíam vales,
Quando não sentiam fome,
Quando não nasciam seres,
Quando não urdia a existência,
Quando não cresciam as árvores,
Quando não percorriam as terras,
Quando não agia a experiência,
Quando não explodiam os miolos,
Quando não ofereciam as canções,
Quando não preenchiam o vazio,
Quando não reluziam as estrelas,
Quando não reagiam os egoístas,
Quando não possuíam as geografias,
Quando não ferviam as águas,
Quando não fulgia a extensão,
Quando não exigiam a inocência,
Quando não emudeciam as discussões,
Quando não sentiam o ódio,
Quando não feriam o amor,
Quando não distinguiam as cores,
Quando não restaria os pares,
Eu já existia! Sozinha.
Pairando no centro do epicentro.
Quando ainda não cresciam raízes –
Escavava as covas e os buracos negros.
Universum, Universe, Univers: Meu!
Muito mais do que qualquer Deus!
Ilustrações: Gertrude Abercrombie
Mariana Basílio nasceu em Bauru, interior de São Paulo, em 1989. Escritora, poeta e tradutora. Mestre em Educação pela UNESP. Colabora com ensaios e tem poemas em diversos portais e revistas nacionais e internacionais. É autora dos livros de poesia Nepente (2015), Sombras & Luzes (2016) e Tríptico Vital (2018) – poema longo contemplado com o Prêmio ProAC do Governo de São Paulo 2017. O livro também foi um dos finalistas da Residência Literária do Sesc 2018. Será lançado durante a Flip 2018. Site para contato: www.marianabasilio.com.br