Um aceno aos girassóis – Airton Souza


distante do sopro dos dias
a pele engendra um abismo
de devoção e vela

não tem jeito
a semântica da chuva
[ sob o exílio no  mundo ]
ensina como andar sem flores

reescritura as pálpebras
redesenhar  a excedente palavra: solidão

perto do que há dentro da voz
rarefeita de percurso e tormenta
grita o emblema: ruína

não há prece para curar
a ausência do que falam as chaves

atravessar a porta pela última vez
é constatar que o amor
agora é outra explicação
sem linguagem ou metafísica

que o amor supera chão
vence a fraqueza do sono
& caminha pela exígua casa
com mãos dadas a frivolidade
de um coração vazio

amar também é saber:
todo epitáfio é escrito com ternura!
 
***

há naufrágios demais
nesse corpo que quer margem
repertório de queda
no espelho que noticia
mergulho e presença

um dia
há de se revogar
a paisagem selvagem
das fotografias não reveladas
& as ruínas dos conventos
que só permitem segredos e silêncios.
 
para o personagem Florentino Ariza, do romance O amor nos tempos do cólera,
de Gabriel García Marquez


ninguém se importará
com o evangelho amarrado
ao mastro do morto

com a peremptórica história içada
ao significado de seu nome
incontornável ao batismo da palavra amor

com o tombo & o chão
clarividente à curar a ausência
no flanar pela cidade

o tempo confessa os homens
a si ou assim mesmo: coléricos

importa confessar aqui:
a comoção é um viagem
de amantes tardios.
 
***
 
à clarividência dos sermões
tinha nas retinas um rosário
construído a base de mármore
pronto a orientar a escrita
[ à medida que dilacera o homem ]

no arcabouço dos ossos
refazia a confidência da divindade
ao interpretar as sensações de êxodo

em uma certa noite
se vestiu de memória
& foi argumentar o grito:
por que me abandonaste, pai?

Poemas  do livro inédito “um aceno aos girassóis” .
Ilustracões: Bastian Kienitz

Airton Souza é poeta e tem publicado 30 livros entre poemas e literatura infanto-juvenil, além de ter participação em mais de 70 antologias literárias. Venceu mais de 40 prêmios literários, entre eles: Prêmio Dalcídio Jurandir de Literatura 2013, IV Prêmio Proex de Arte e Cultura, III Prêmio de Literatura da UFES, 1º Lugar no Prêmio LiteraCidade Prosa 2014, 1º Lugar no Prêmio Gente de Palavra 2017, Prêmio Carlos Drummond de Andrade 2017, promovido pelo Sesc de Brasília, foi finalista no Prêmio Kazuá de Literatura 2016, com o livro um acenos aos girassóis e só em 2017 esteve entre os vencedores de mais de vinte prêmios literários, entre os quais: 1º Lugar no Prêmio de Poesia Cruz e Sousa, promovido pela Editora Do Carmo, de Brasília, o Prêmio Vicente de Carvalho, da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro, com o livro crisântemos depois da ausência, o Prêmio da Academia Ferroviária de Letras, o Prêmio Clóvis Meire – categoria monografia e o Prêmio Vespasiano Ramos – categoria poesia, da Academia Paraense de Letras de 2017 e o Prêmio Nacional de Literatura da Fundação Cultural do Pará 2017, com o livro o tumulto das flores. Atualmente é mestrando de Letras, pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará.

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