4 poemas de Maya Falks

 
Aleppo

I
Havia sim um elo entre todos
Que não fossem de raça, credo ou origem
Repiravam o mesmo ar pesado de morte
Repiravam na dança macabra da fuligem
Sob botinas de couro e borracha o chão parecia de nuvem
Fumaça para todos os lados entre corpos marcados, anjos perdidos
Povos sem lar, sem rumo e sem norte
Dos restos da casa, o homem fardado fazia a guarda
Boneca de pano no canto dos móveis marcados, quebrados, perdidos
Um dia ali dentro crianças brincavam de polícia e bandido
Os tempos mudaram, não havia inocência ou vida talvez
Um som estremece a cidade, os sobreviventes entendem que começou tudo outra vez
Um quadro mal pendurado revela a família que um dia foi feliz
Agora, despedaçada, mantém em seu seio quem escapou por um triz
Nas ruas resta o concreto estraçalhado e o pó que subiu
Das bombas que ali atingiram, a beleza e a vida, o tudo sumiu
Na praça central da cidade cachorros vadios não existem mais
A vida, o sopro e a brisa, a paz e o futuro ficaram pra trás
Nas ruas, ruínas e gente sem esperança
Nas casas espalhavam-se corpos, velhos, adultos e crianças
O som que se escuta na trégua é o silêncio quebrado pelo choro baixinho
Carregado de dor e descaso, de morte e abandono, sem paz, sem carinho.
A bela cidade florida deu lugar ao inferno sem nem avisar
Famílias inteiras em trapos, tentando fugir pra outro lugar
Em barcos de ar e esperança encontram a morte nas margens do mar.

II
– Vês? Nada resta!
Chora a menina, olhando na fresta
            Vestido de bolinhas rasgado nas mangas

Dois passos pra fora, vem a escuridão
Um soldado armado caminha ileso
            Sem um arranhão

Do lado de dentro não há nem telhado
Se ainda houvesse chuva, tudo estaria molhado
            Mas até a chuva se refugiou em outras bandas

O prédio é ruína, nem lembra o passado
A praça perdida fica lá do outro lado
            Não há mais crianças pra brincar de castelo de areia

Celebra um homem com um bote inflável de contrabando
Exibe o peito aberto, caminha mancando
            Seu rosto encontra o chão antes do corpo encontrar a porta

No lugar das pipas, os meninos contam mísseis
Eles sabem que a queda encerra dias difíceis
            Já não há mais vagas no cemitério

À noite, cansada, a criança não conta mais carneirinhos
Conta estouros, bombas, barulhos de bala
            E dorme sem saber se vai acordar outra vez

Um estampido à curta distância e o pai corre pro berço
A criança ainda respira, sem marcas ou feridas
            Ajoelhado, ele fala baixinho – eu agradeço

Ela levanta os bracinhos pra se render
Nem sabe bem o que significa
            Mas sabe que ainda pode morrer

III
Já houve tempo de paz, há muito esquecida
Pessoas como eu e você, vagando em ruas em ruínas
Sua vida, sua história, perspectiva perdida
Um corte na alma, o corpo exibe a ferida

Já houve, no passado, alegria e progresso
Do futuro brilhante, restou o regresso
À selvageria, ao ódio e ao caos
Em tempos de guerra, o ódio é réu confesso

O barulho das bombas interrompe o silêncio
Da terra arrasada desprovida de sorte
Nas ruas, ruínas não contam histórias
Nas manchas de sangue, um rastro de morte

Passado é o tempo de um dia feliz
Crianças cresciam em paz e união
Na guerra o ódio não se contradiz
Nas ruas e esquinas a marca profunda da destruição

No campo de guerra não tem aliado
Tem homens buscando alimento e proteção
Família escondida, futuro dilacerado
A vida e a esperança sem rumo caindo ao chão

Os canteiros floridos dão lugar aos cartuchos de balas
As escolas tomadas de poeira e vazio
Não há mais ensino nas salas de aulas
Acordam sabendo que a vida está por um fio

IV
Um dia, quem sabe, tudo volta ao normal
            Terá se passado uma era talvez
A vida findada tal qual vendaval
            O barulho da bomba revela tudo outra vez
A esperança veste luto onde um dia foi vida
            Vida? Não restam mais dúvidas da história perdida!
Logram vitória como se fosse possível
            O sangue escorrido do povo invisível
Família, o que sobra, vira refugiada
            Em terra estranha porque a sua foi arrasada



V
Bum
O zumbido no ouvido deixa marca profunda
Bum
A mãe pega o filho e se esconde no quarto
Bum
A parede desaba com um novo impacto
Bum
Entre tijolos encontram a mão da criança
Bum
Não nasce mais flores em nenhum jardim
Bum
A vida, entre balas, chegou ao fim

VI
Era eu apenas uma garotinha
Cabelos ao vento, vestido de bolinha
Nas ruas da cidade, traçava meu trajeto
Da escola à minha casa não era traço reto
Cruzava ruas e avenidas
Todo mundo trabalhava, cuidava de sua vida
Eu gostava de aventuras, no mercado me escondia
Vivíamos tempos doce, de paz à noite, vida ao dia
Até que a guerra a nós chegou
Pouca gente entende ao certo como tudo começou
Bala e bomba toda hora
Ajoelhada, a mãe à vida implora
Sob o pó pela bomba levantado
Jaz o corpo de mais um pobre-coitado
Fardado, o menino não entende
Todo o ódio que à arma agora o prende
Acordamos todo dia sem saber pra onde ir
Papai um dia disse que a nós resta fugir
Mas quem somos nós nesse mundo sem fim?
A história aniquila a esperança e termina assim
Depois de muito tempo, nos unimos aos conterrâneos
Fugimos de barco e encontramos a morte no Mediterrâneo

VII
Ela chora baixinho ao lado do corpo da mãe
O pai foi pra guerra e ela sabe que ele não volta mais
O irmão soterrado não pede socorro
Sozinha no quarto espera o milagre que não virá
O zumbido no céu e a esperança
“Será essa a bomba que vai me matar?”
Nos sonhos inocentes tem um jardim pra brincar
Pela janela só restam ruínas, a vida parou
Não há mais futuro, o país acabou
Sai solitária com a boneca na mão
O tiro, perdido, acerta o coração
Ela, enfim, encontra a paz

VIII
As lápides sem nomes fazem fila
Nem todo mundo será encontrado
Nem mesmo inocentes terão funeral
A guerra não mata apenas vidas
Mas aniquila dignidades
Histórias interrompidas por pura maldade
A guerra há de acabar por falta de gente para matar



Trapos

Das vestes surradas, se escapam os olhares de súplica
A dor estampada nos olhos enquanto o frio engole a alma
Perdido, num canto cercado de nada por todos os lados
Seus olhos encontram repúdio nos rostos que permanecem calados
Nada, um nada de nada que sobra nas pedras da cidade concretada
Um corpo inerte na rua que vagueia invisível feito alma penada
Arrasta nos pés da miséria, sua alma paupérrima transita dilacerada
Na lata suja do tempo vai contando os trocados pra fila do pão
O cabelo mal aparado, todo desgrenhado, passou a noite no chão
O corpo de restos de restos, de lixo do lixo, não encontra perdão
Dormiu sob a marquise da loja e o vento forte levou seu papelão
A noite que chega manchada das luzes nas ruas e na alma a escuridão
Acorda em meio à fumaça, seu corpo em chamas procura a redenção
Enfim, o resto do resto foi visto perdido no frio da calçada
Queimando, sob risos estranhos, bate no corpo, esforço em vão
Desaba, já sem dor e sem vida, naquele segundo findou sua estrada
O riso que antes se ouvia agora se convertia em mero descaso
Azar de tal vagabundo, perdido e imundo, vestido de trapos
Agora o homem queimado, sem futuro ou passado, ou história possível
Voltava ao seu posto de resto, de nada com nada, um homem invisível



Filha da miséria

Eram quatro quartos montados com o improviso da miséria
Separados por panos em farrapos de onde era possível ouvir o grito agoniante daqueles estômagos vazios
Eram quatro espaços diminutos onde a mãe contava histórias
Eram frestas nas paredes de retalhos que ao frio provocavam arrepios
Pés descalços, em feridas das pedras pontiagudas da vila
Pelo leite e pelo pão, as mulheres murchas envelhecidas faziam fila
Era pouco, quase nada, em lágrimas densas saía a mãe da mesa
Engolia o luto da vida perdida, do filho consumido de fome e pobreza
Havia o pó que subia sem dó quando passavam os carros dos poderosos
Era caminho das belas mansões que ao longe faziam silhueta
Nos vales com montanhas verdes e picos rochosos
Enquanto do lado de cá criança faminta marcava a sarjeta
Já nem cantava aos filhos canções de ninar
O sono só vinha quando o corpo faminto desabava de tanto chorar
Não quis o destino dar-lhe esperança
Encheu-lhe o ventre e a casa de rebentos sem instrução
Sofria com a expressão do desespero no rosto cansado de cada criança
A cada doença da água estragada e comida faltosa feria-lhe o coração
Diziam-lhe que era escolha sua porque se quisesse nenhum filho faria
O olhar de desprezo de quem desconhece a vida que leva, sem nem compaixão
Escrevia duas letras, se muito, nem mesmo seu nome de fato sabia
E dela esperavam cuidados que nunca quem julga foi capaz de ensinar
Mas é bem mais fácil na vida apontar o dedo e poder condenar
Ela, que só tinha coragem de catar nas lixeiras o que os ricos deixavam pra trás
Ela, que tinha seis bocas vazias em casa para alimentar
Os outros sucumbiram à fome, à dor e a miséria que nunca os abandonou
Ao contrário do pai das crianças que um dia partiu e nem se importou
Era ela contando com a sorte, testemunhando a morte que insistia em voltar
Sozinha no meio do nada, a vida acabada a sempre lembrar
Que assim o destino quisera, sem choro nem vela, amaldiçoar
Cada filho dessa vida ingrata, sob a miséria morrer e matar
Tiravam as chances da vida, por um pão aceitava qualquer humilhação
Menino criado como bicho sarnento e ainda cobravam ser bom cidadão
Nas vielas da vida, sem eira nem beira, ia ela implorar
Um prato vazio de comida sobre a mesa quebrada da casa que ia se esvaziar
Dos filhos, famintos, sem chance, os que viveriam iriam roubar
Ela, fraca e sem brilho, da vida maldita que Deus lhe deu
Abraçou o diabo com força, pedindo à benção de quem já morreu
Os panos que separavam os quartos testemunhariam sua depressão
Seu corpo entregue aos homens com bom dinheiro e sem coração
 Debaixo de corpos pesados, suspiros molhados, chorava de dor
Ninguém se importava com ela, não havia na vida conhecido o amor
Jovem em corpo de velha, as marcas da fome eram tal cicatriz
Olhava pra trás na sua história e sabia que nunca tinha sido feliz
Agora, com filhos bandidos, ou mortos, perdidos, se viu sem razão
Da miséria guardada no bolso, a faca em ferrugem encontrou o coração
Morreu sem dentes na boca, barriga vazia e uma história sem cor
Morreu chorando baixinho, no seu cantinho, sem pedra bonita ou coroa de flor

(Poesia do livro Versos e Outras Insanidades – Macabéa, 2017)



Surto

Senti os caminhos de cada manhã como os galhos pontudos que rasgam minha pele
Meu coração apertado bate descompassado com medo que meu corpo inteiro congele
Sob a lua escondida da noite sem fim, sinto o vento gelado tão perto de mim
Sei que o tempo já urge, espera que eu pare, que eu aja assim
Não reconheço meu rosto no espelho, meus dedos se movem sem eu controlar
Eu paro perdida no meio do nada, com a alma ferida, eu quero gritar
Sei que nada disso é verdade, to presa em minha mente, ninguém vai me salvar
Seguro meus braços em prantos, meus dedos malditos me farão me matar
Minha mente que grita assustada, perdi o controle, não sei pra onde ir
As vozes que gritam nervosas, me xingam e exigem que eu saia daqui
Já não sei o que faço, não mando no corpo que age sozinho a desobedecer
Estou presa em mim mesma, eu peço socorro, eu quero morrer
O peito explode em agonia, em cada noite fria eu vou percorrer
Não sei mais o que faço, meu corpo implora mas eu quero viver
Saboto minha própria vontade, a vida me cobra que eu consiga vencer
Penso nos amores perdidos, tantos zumbidos a me confundir
Aperto meu corpo em um abraço, digo que me amo e não quero fugir
Os monstros não são aliados, parecem irritados e insistem que eu vá
Pego a faca afiada, escondo da vista, não vou me entregar
A floresta que cerca meu corpo se encolhe em silêncio, perderam outra vez
Retomo o controle do corpo, pouco a pouco, venci vocês
A alma apertada no corpo exige respiro pra sobreviver
Rompo um pouco de pele, liberto a ferida que tá dentro de mim
Rubro, escorre aquecido, corpo umedecido já posso prever
Que a dor dessa vez foi embora, os monstros partiram, chegou ao fim
Mas sei, por bem não iludo, eles sempre sabem onde me encontrar
Me armo de amor e esperança, eu sei que isso cansa, mas vou superar


Ilustrações: Oswaldo Guayasamin
Fotografia de Maya Falks: Angela Nadin


Maya Falks nasceu Márcia Bastian Falkenbach, no dia mais frio do ano de 1982. Sua história com a literatura começou aos 3 anos, ditando à sua mãe os diálogos dos quadrinhos que desenhava. Aos 7 esboçou seu primeiro romance romântico, aos 11 escreveu seu primeiro romance policial e aos 14 reuniu suas poesias em sua primeira antologia. Nenhuma dessas obras foi publicada.
Aos 24 anos, junto com sua primeira vitória em concurso literário, Maya escreveu aquele que seria seu primeiro romance publicado – somente 8 anos depois – intitulado Depois de Tudo.
Atualmente, Maya é publicitária, jornalista, acumula mais de 20 prêmios entre contos, crônicas e poesias e é autora das obras Depois de TudoVersos e Outras InsanidadesHistórias de Minha Morte Poemas para Ler no Front.

 
 
 
 
 
 
 

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