8 poemas de “A ilha naufragada” de Natan Campos


Abrir a alta janela da vertigem            
sobre essas desamparadas ladeiras
na hora em que dois sóis em sangue tingem
a tarde parecendo a derradeira,

olhar do velho oitão essas fuligens
que também se agregam nas cumeeiras
e as osteoporoses que atingem
os caibros como a uma velha caveira

é estar impregnado da cidade
quando se chega à provecta idade
em que a carne se faz poesia,

trazer nos olhos a quietude pasma
que talvez só tivesse algum fantasma
que habitasse uma morada vazia.

…………………………..


O homem que habita o velho matadouro
vai cabisbaixo, emudecido e gasto             
como se fosse ele mesmo o touro                                                                           
de quem retira a prole, a carne, o pasto.  

Bebe do mesmo bestial bebedouro          
que o animal que de feroz a casto
leva marcada a servidão no couro
e ainda sonha um campo verde e vasto.

O homem à semelhança de um boi,
perdido da humanidade em que foi
concebido, rumina a própria vida

na maceração lenta e amarga
de quem carrega a descomunal carga
de ter a mesma morte com que lida.

………………………..


O homem bovino pelas campinas
de um bairro em que vive o seu desterro,
como a enxergar o seu futuro enterro,
engole sua angústia e a rumina.

Vai, boi de corte, cumprir tua sina
de ser campeado pelos aterros
como a pagar pelo ancestral erro
de ter nascido em condição bovina.

Humano bezerro pelos currais
vagindo palavras que nada mais
pedem a Deus que a cura das feridas.

Vai, desmamado e perdido vitelo,
curvar teus joelhos sob um cutelo
na derradeira oração de tua vida.




Só o tempo assiste o cão entardecido
na curvilínea forma do abandono,
lembrando um fardo morto ou esquecido                                                                                                       
à beira da vigília, ao cais do sono;

um cérbero destinado a ter sido
o único amigo de nenhum dono,  
que nas rinhas do cio é o vencido
e lambe as próprias chagas como abono.

Só o tempo a dar-lhe essa aparência eterna
de quem à sombra de um sobrado hiberna
o ampara de si mesmo até na morte.

E o instinto de uivar para extintas luas
o consola das agruras das ruas
sem ter sequer uma mãe que o aborte.

………………………


A tarde sangra pelo horizonte
e o rio é curvo como uma serpente
que sente sede de sua própria fonte
e talvez sinta do sangue da gente.

Quem viu do rio a boca não me conte
se a viu de perto e foi sobrevivente.
O rio engole o barco, o marco, a ponte
e as próprias margens se o mangue consente.

O rio sobe e bebe as palafitas
e as lágrimas o engordam de desditas,
e as mães clamam aos filhos “não me deixes”,

quando estes vão brincar nas fundas águas
e o rio desemboca suas mágoas
vingando a mortandade de seus peixes.

……………………….


Da existência a essas alturas
(ou talvez a essas profundidades)
já pouco importa o quanto peso, a idade
e desse invólucro a escultura.

O que aqui em mim ainda dura
em suas íntimas eternidades
se despe da soberba e da vaidade,
da roupa, pele, carne e ossatura.

E segue despretensiosamente
por vias tortuosas, longas, escuras;
nem poeta, nem triste e nem contente.

A essas alturas já nem disfarço
que a mão se agarra ao verbo insegura.
Que os versos se façam enquanto eu passo.

………………………..


Da múmia paralítica e vazia
vejo uma das mãos feia e crispada;
não sei se era uma cruz ou uma espada
que em outros tempos essa mão trazia.

A outra mão, no entanto, o que fazia
era um gesto de desamparada,
pedinte, mendicante, amputada,
não decepava alguém e nem benzia.

As minhas mãos também não sabem mais
se vale mesmo a pena ou tanto faz
acenar um adeus, bater às portas.

De ver aquelas mãos (crispada/aberta)
as minhas sabem de uma coisa certa:
um dia elas também estarão mortas.

………………………….


Desde meus pré-cambrianos ancestrais
ou um sêmen derramado de algum deus
no cálice em que ele mesmo bebeu
nas grotescas orgias siderais,

meu ser vem sendo das forças astrais,
bem mais do que tem sido o próprio eu,
o norte que a si mesmo se perdeu
nas embriagadas danças orbitais.

E como se o orbe fosse um convés
onde eu tivesse fincado os meus pés
pra regá-los de abundante saliva,

sofro dos ébrios deuses o apetite
que têm de cósmicas labirintites
e a náusea de em terra estar à deriva.


Ilustrações: davespertine/deviantART




NATAN CAMPOS (Natanilson Pereira Campos) nasceu na ilha de São Luís, em 31 de dezembro de 1972. Formado em Licenciatura Plena em Letras (Português/Alemão) pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA, o poeta escreve seus primeiros textos em verso no início da década de noventa, época em que conhece outros jovens escritores, como Hagamenon de Jesus, Ricardo Leão, Antonio Aílton, Bioque Mesito, Dyl Pires e José Neres, que já começavam a publicar suas obras e a arrebatar importantes prêmios literários locais e nacionais.
Participou de antologias literárias como Safra 90Antologia Carranca de Poesia e Antologia de Contos dos Grupos Carranca e Curare de literatura, e atuou em peças teatrais como Poemas para Che (2011), Toilet (2013), ambas de Charles Melo; e On Sale e Agridoce (2012), do texto de Zen Salles.
Tem premiados a primeira versão deste A ilha naufragada (com menor número de sonetos) na 36ª edição do “Prêmio Literário Cidade de São Luís”, em 2015, e o conto “Belerança” no “36º Concurso Nacional de Contos de Araçatuba”, em 2017.
Atualmente se dedica a seu projeto de produção literária como contista e romancista, revisitando textos que tiveram seus primeiros capítulos e versões escritos ainda no início da década de noventa, quando também escreveu seus primeiros últimos versos.

Tem inéditos o livro de contos Os arredores de ser-se, o romance O outro pasto, o cordel Inferno da Pedra e em gestação a novela O Rendez-vous.

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