Aí, no riso leso e reteso,
torso ágil e rosáceo, nu
– e tu és a mesma rara pessoa –,
me soam saúde,
saudades,
asilo…
Dícroto, parto e luto de ti,
o nada ter paira,
valor e perda,
madrepérola vária
preta da noite.
Do tule, o trapo torcido,
lisa seda…
Duas e duas,
mãos e mãos separaram-se.
Mas eu te uno e caso…
– Religa os rotos, etéreos elos, ironia!
*
Aroma d’amor,
além-odorosa rosa.
Vaso rosirróseo,
duplo pomo polpudo
e sorriso rosa.
Vaso raso,
rodomel,
aroma d’amora…
*
À diva, dei-te dor e me feri.
Acedo: demore-me o revés.
E agi mal? Amei.
Hoje, se dói o desejo
– hiemal, amiga, e severo –,
é mero medo de cair,
efêmero, de ti e da vida.
*
A ideia amara
hoje sorriu.
Fez mais: despiu
a veste rara
e a nudez cara
ofertou vil
a quem, hostil,
sempre a cultuara.
Porém, sutil,
seu fio mudara
e noutro lio
já se enredara.
A ideia clara
hoje faliu.
I.
a promessa de polpa,
outro passo inseguro
– amor cai de maduro
ou se arranca do pé?
amor demanda roupa
de domingo, alvo e puro,
ou se faz contra o muro
não importa se em pé?
sem cabeça nem pé,
todo amor não se poupa
de arranhada no escuro.
nem cogita o futuro,
é mordida festiva,
manga-espada e saliva.
nem escapa de assédio,
anel, penduricalho,
ciúme, esquecimento
de aniversário, tédio
(sobretudo vexame),
alho e bala de menta,
e de fazer as pazes.
amor nunca faz conta?
amor ou faz-de-conta?
que dizer de quem ame?
e quem ama, ama o quê?
amor trai, amor cai.
nasce em quintal alheio,
carambola sem graça
se não for surrupiada.
é caqui-chocolate
que amarra, fruta-passa?
isto passa? isso espera?
nada espera? exaspera
mas volta, amor, e fere
coração e razão
– fere os dois, igualmente.
talvez amor pondere
numa fruta pendente
a semente – mas sabe
a semente o que é amor?
flor, a fruição, a centelha?
o inseto a crase o ponto
o bocado melhor
ou melhor era o de antes?
a saudade na língua
fome sede secura
amor tem sede? amor
pede água? amor se rega
mas demais escorrega
amor seca amor vem
amor vai
palavrinha
amor amor amor
dez mil vezes e nada
nada nada define
o perfume essa nota
magenta
flor que brota
e definha violeta
a paixão.
*
II.
a verdade? penso, logo hesito.
não afirmo que te esqueço
nem desprezo um recomeço
depois de depois do depois.
nem sei bem se fomos dois
ou a metade.
outra verdade? era dezembro
e teu vestido era amarelo.
eu lembro,
tinhas deixado o namorado,
ou não tinhas?
disseste que era recente
e foram ciúmes, possessividade.
eu poderia me lembrar
de como algumas mulheres se apoiam
nesse hexassílabo para deplorar
a restrição a fendas e decotes e amizades
e exprimir a ofensa
à liberdade tão preciosa
– e nem é de usar, dizem,
mas só o saber que ela existe…
decerto eu poderia me lembrar,
mas não pensei nem hesitei.
e todos os sinais estavam aí,
todo prenúncio,
mas também teu corpo.
mas também teu corpo.
quanto era lindo a qualquer hora
esse teu corpo
sempre em flor, sempre tão fresco,
e teu sorriso astuciosamente sereno…
mas eu não sabia (ah! e eu deveria!)
que se há sol, há noite,
e se há bonança, há um ditado
que se aplica, enviesado, a esse contexto.
enfim, tu foste
meu único pensamento e ocupação,
minhas palpitações e meu sono tranquilo,
meu sonho.
eu então te buscava a todo instante,
e era minha a tua vontade,
mas tua vontade era só tua,
mesmo se estivesses nua
e explodisses em gozo
e repetisses o mantra dos enamorados.
eu nunca soube, deveras,
o que habitava teu silêncio:
os teus rios subterrâneos,
o significado de tua ausência,
a chama invisível, ai! e tu, quem eras?
ainda assim, quanto aprendi contigo
(ou deveria) desse universo outro!
esse outro modo de ser e de pensar,
feito de alegrias fugazes
e de frases entreabertas como frestas
e de festas e de tardes preguiçosas…
mas, ah! a fatalidade!
– o tempo,
nem inimigo nem cruel,
só tempo,
desfraldando o estranhamento, a intemperança,
revelando essa tão prática, tão óbvia
e simples realidade,
paulatinamente pontuando
a diferença entre nossos gostos,
divorciando-me de teu cheiro,
desfazendo o véu de teu carinho,
transmutando
em ressentimento o sobressalto
e em rancor pétreo um estremecimento…
aqui e ali um hiato e,
repentina,
essa angústia
de romper, se cada beijo
não for pleno e responsório,
pão, pão, queijo, queijo.
essa rotina de que te queixavas
e nem sei qual era, se mal te via
e te cansavas, se já nem ficavas à noite
para um carinho, um vinho –
só pão, pão, queijo, queijo…
o que eu te disse aborreceu-te?
o teu silêncio, que me fez?
ai, o tempo, a vida
aviltando a memória eleita,
a carícia insuspeita,
rasgando
a teia geométrica perfeita.
penso, logo insisto
em pensar que penso,
mas não penso
– não é pensando que te lembro,
é de outra forma
é com meus fluidos, certamente,
e com saudade de teu sexo,
mas muito mais
mineralmente, imantado,
como música em língua estrangeira
se não se conhece o idioma,
como lembrança de infância
idealizada por adulto.
ingratidão? nem ela existe,
só a expectativa infundada no outro,
pois somos só o que somos,
e antes assim
que nos prendermos ao que fomos,
à imagem de nós que o espelho não reflete
nem as fotos.
não somos dois,
não sou metade,
estou penso.
penso, me perdoes.
sinto, não me doas.
em minha lembrança, vejo que estás
mais e mais bela,
e só as notas mais sutis de teu perfume
fixam-se nas cartas que não me escreveste.
a tua figura em mim se lima e suaviza
como a paisagem vista ao longe
quando nem é dia nem o sol se pôs.
linda para mim porque recordo,
e para ti porque hás de ser,
e mais não digo,
penso
logo
esta ferida.
*
Já não são meus, não são, os olhos meus sem pranto.
Dói sentir que, emoção contida, gesto quedo,
apenas resvalei na vida – que meu medo
valeu-me não provar prazer nem desencanto.
De que me serve o ideal antigo, de arremedo,
em cuja crença, absorto, eu me perdi? Foi tanto
o zelo em me guardar, foi tanto! E, com espanto,
vejo de mim guardado apenas um brinquedo…
A promessa que fui não se cumpriu: passou-se
o tempo, que não volta, e não agi. O braço
lasso deixou cair ao chão o fruto doce,
e não transpôs em voo o pensamento o espaço.
Por isso este meu pranto, aflito e derramado,
o pranto em que me acordo de não ter sonhado.
Solidão de após
o amor: o sangue da têmpora
ouvido na concha.
*
Quem te disse que era eu o que te sigo?
Era todo o meu ser… não era nada,
não sou mais do que os bosques ou a estrada.
Estou farto do tempo, e não consigo
ser com os teus o que eles são contigo
– recuso-me às verdades acabadas.
Tenra flor, a esperança malograda
guarda um atroz, recôndito inimigo
sob os seus beijos, dolorosamente:
essa elementaríssima semente
duma desgraça alegre que me incita
e planta-se no vaso e nasce em lírio.
Mas isso amor não é; isso é delírio
– nem sabe a folha o vento que a visita.
Colagem de versos de Camões, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, Ledo Ivo, Machado de Assis, Jorge de Sena, Bocage, Raimundo Correia, Antero de Quental, Augusto dos Anjos, Cesário Verde, Jorge de Lima, Gonçalves Dias e Carlos Drummond de Andrade, nesta ordem.
Ilustrações: Saulo Silveira
Paulo Brombal, nascido em Jundiaí (SP) em 1961 e residente em Brasília, é autor de Tessitura(Massao Ohno, 1988) e A Dual Lauda (Editora Patuá, 2017).