Ilustração: Marta Herrero
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1.
O espelho do quarto exíguo
reflete não mais a imagem
do quarto. Nem da cama,
nem do homem que olha
um verme que devora a noite.
Pela plana e ruiva superfície,
enferrujada de suores vários,
ele desce uma escada tosca,
aqui e ali mal iluminada
por um foco de luz inquieta.
Trêmula. Postiça, talvez,
em sua fraca lâmpada frouxa
e pendente, e incauta, e fraca,
de um fio de pó ou pólen de vidro:
moído vidro de um relógio morto,
no pisotear de um tempo estrábico.
Entre o claro e o escuro disformes,
outro homem se interpõe e desce.
Tece a escada no espelho fosco
e transforma o quarto fechado
em aberta paisagem externa
e extrema. Pelos postigos da janela,
os espectros avenida se derretem,
na tortuosidade da ruela que verte
barroca e sinuosa paisagem artificial:
nas rugas, nos rostos, nas brechas
de uma falsa pátina aquarelada em verde.
2.
A escada vazia e tosca
divaga na sofreguidão
da lâmpada ainda acesa.
Passos rangem entre cupins
que o pé esmaga. Invisíveis
vítimas de uma noite tesa.
Rostos passeiam entre séculos
e os passos ainda largos
se dirigem a uma esquina:
quina pontiaguda e suspensa
que o relógio de vidro
encena num quarto de hotel.
De repente, da rachadura
do espelho, a casa se fragmenta
em lógico deslizar pelo penhasco.
Num lento quadro a quadro,
quarto e rua fundem-se novamente
em tapete e pedra, emaranhados.
3.
Há um degrau de morte
no desvão da escada.
Aranhas, aos montes,
o preenchem de tênues
dúvidas. Austeras, tecem
o sono, em lugar da espada,
em ingênuos arremedos
do arremesso final e inquieto.
Há luzes na calçada,
mas o espaço pouco entre
ela e a noite é interrogação.
Pergunta que paira
na irrespondível chegada
de uma insossa manhã
quase impossível e frágil.
Tão frágil que mal se ouve
os passos que rangem
na escada invisível
que se esconde e se mostra
por trás do espelho.
4.
No avesso do quarto
exíguo do hotel barato,
reflete a telha chã e vã
que reconstrói o dia pelo inverso.
Na luz que entra e se espalha
pela extensão da cama velha,
ainda se sente o soar dos passos,
a ecoar no brilho da lâmina
que os olhos então dispersos
registram ainda como estranha,
límpida e marmórea lápide.
Leopoldo Comitti nasceu em Rio Negro – PR, em 03 de abril de 1956. Cursou Letras (UFPR), Especialização em Literatura Brasileira (UFPR), Mestrado em Literatura Brasileira (UFMG), Doutorado em Literatura Comparada (UFMG) e Pós-Doutorado em Comparada (UFF). Em Curitiba, foi um dos fundadores da Coo-editora, pela qual publicou Jornada(contos), e As manhas da Filó (infantil). Foi Professor Adjunto da Universidade Federal de Ouro Preto, onde, além das atividades de ensino e pesquisa, também se dedicava formal e informalmente a oficinas de criação poética. Lá publicou Fundo Falso, sou primeiro livro de poemas. Obteve uma Bolsa de Escritores da Biblioteca Nacional, em 1999, na categoria de Poesia, com Por Mares Navegados. Foi também premiado, na mesma categoria, no IV Festival universitário de Literatura, com Jardim Inóspito. Em 2012, publicou O Menino Debaixo da Mesa (poemas), e Natureza Morta(romance). Em 2014, lançou, pela Patuá, A Mordida do Cordeiro.