Tia Ivonete dirigia a kombi nos meus primeiros anos de escola. Levava a gente pra lá e pra cá, nas rotas de idas e vindas. Sempre cantando, sorrindo e fazendo uns gestos engraçados e largos. Ela era amiga de quase todo mundo. Falava meio alto e ficava braba quando os meninos faziam muita balbúrdia no fundo da kombi, mas só de brincadeira. No fundo ela nunca brigava, levava tudo na piada, com risada pronta.
Eu, por algum motivo sempre olhei pra ela com certa distância. E ela respeitava isso. Eu era muito pequena, de idade e de espaço, sempre olhando muito pro chão. O jeito da tia Ivonete me dava um pouco de susto. Tinha alguma coisa nela que não era igual. Ela tinha cabelo curto, mas ainda não era nem um pouco velha. Andava de um jeito só dela. Usava umas roupas folgadas, um All´Star vermelho e era a única mulher dirigindo transporte escolar num raio largo de escolas da região.
A maioria das mulheres acompanhava os maridos ou os homens que dirigiam as kombis e ficavam cuidando das crianças. A tia Ivonete, não. Ela mesma dirigia e tinha uma ajudante que ficava de olho na gente e ajudava na subida e descida dos menores.
A tia Miriam.
Os meninos maiores sempre brigavam entre si, disputando quem seria o namorado da tia Miriam. Mas ela nem ficava sabendo, ou se ficava, deveria rir dos fedelhos metidos a homens-grandes. Tia Miriam chamava a atenção não só dos meninos mais velhos. Ela tinha um cabelão preto cheiroso de xampu que deixava rastro por onde ela passava, sorria bastante e sempre tratava todo mundo muito bem. Brincava, cantava músicas, abraçava quem tinha sido avacalhado pelo colega, cuidava quando a gente ralava os joelhos.
Tia Ivonete, enquanto dirigia a kombi, cantarolava músicas que tocavam na rádio. Eu gostava muito daquelas músicas. Eram as mesmas que minha avó Bina colocava aos domingos, quando a gente ia almoçar na casa dela. Às vezes, tia Miriam também se botava a cantar com tia Ivonete e as duas formavam uma pequena banda. Alguma coisa dentro de mim fazia festa de ver gente cantando junto, esses momentos me transmitiam algo que eu não via na minha casa. A tia Ivonete ganhava outro semblante. Um diferente do de todo dia. A testa perdia até as duas ruguinhas que às vezes ela sustentava. Vai ver o sonho dela era ser cantora, e acabou virando motorista de kombi, eu pensava às vezes.
Com o tempo eu fui gostando de gostar da tia Ivonete de longe. Ela me deixava admirada de um jeito que naquela época eu não sabia ainda expressar. Talvez daí o receio de chegar muito perto. A tia Miriam já parecia mais com a minha mãe. Ela poderia até ser minha mãe. Não sei se ela tinha filhos, mas ela acolhia todo mundo como se tivesse. Eu gostava muito dela e também ficava admirando. Com ela eu não tinha essa coisa da distância. Ela era como o que todo mundo já conhecia.
Às vezes, eu tinha medo que a tia Ivonete pensasse que eu não gostava dela. Sempre tão querida, sorrindo, querendo brincar. Com todas as crianças ela era assim. Até com os maiores que incomodavam mais. Eu queria poder explicar pra ela o que acontecia, mas eu não saberia como. Uma vez ela veio me trazendo um pirulito de laranja e toda brincalhona me deu um abraço. Eu gelei e endureci inteira. Ela ficou muito triste, eu percebi. Logo respeitou meu espaço. Deixou o pirulito comigo e foi brincar com as outras crianças.
Teve um dia que eu fiquei muito feliz mesmo. Meu pai foi até à escola me buscar de surpresa, porque meu padrinho que eu não via tinha algum tempo estava na cidade. Eles me pegariam e a gente almoçaria juntos os três. Eu de longe já notei a presença dos dois e meu coração foi se enchendo de alegria. Eles não tinham me visto. Estavam concentrados em alguma coisa que eu ainda não conseguia ver o que era. Davam risadinhas e cutucavam um ao outro, igual os meninos bagunceiros do fundo da kombi. Conforme fui me aproximando, eu reparei que eles olhavam na direção da tia Ivonete, que trocava o pneu furado da kombi e interagia com os meninos ao redor dela. Ela naquele jeito de sempre, – diferente da minha mãe e da tia Miriam – um jeito bom de ficar olhando. Eu fui abrindo ainda mais o sorriso ao perceber que meu pai e meu padrinho estavam admirando tia Ivonete assim como eu. Eles davam risadas, faziam gestos, acho que eles queriam tentar imitar os movimentos dela. Talvez estivessem com vontade de parecer mais tia Ivonete.
Teve um outro dia que eu fiquei muito triste mesmo. Eu nunca esqueço. Foi no ano seguinte, quando a tia Ivonete chegou muito diferente, parou na frente da minha casa, tia Miriam abriu a porta e me botou pra dentro. Não teve música. Não teve festa. Nem pirulito. As ruguinhas da testa pareciam ter se multiplicado. O clima das crianças também estava silencioso e diferente de algum jeito que eu não conseguia entender. Fiquei mais quieta ainda do que eu já era. Depois eu soube que tinha acontecido alguma coisa na casa da tia Ivonete, que o pai dela teve um ataque no coração. Passei aquela manhã toda angustiada pensando nela e no que eu podia fazer para ajudar. Tadinho do pai da tia Ivonete. O que era um ataque no coração?
No fim da aula eu saí correndo, eu queria chegar na kombi antes de todo mundo. Tomar coragem pra poder falar alguma coisa. Eu não falei nada, mas cheguei a tempo de ouvir tia Ivonete falando pra tia Miriam que a culpa de tudo era dela. Que ela já sabia que o pai não suportaria saber das coisas. Quando elas me viram, imediatamente tia Ivonete assumiu o lugar da motorista e tia Miriam me botou pra dentro da kombi com os olhos marejados. Guardei aquele segredo dentro de mim a viagem inteira de volta pra casa. Como que a tia Ivonete podia ser culpada pelo ataque no coração do pai dela? O que ela poderia ter feito? E o que era um ataque no coração?
Quando eu cheguei em casa, eu comentei com a minha mãe que tia Ivonete estava triste por conta do pai dela com um ataque no coração. Minha mãe disse que tinha ouvido falar e esperava que ele se recuperasse logo, mas não me disse nada sobre o ataque. E eu também não sei se ela sabia explicar.
Depois de umas semanas parece que o pai da tia Ivonete tinha se recuperado bem, mas tia Ivonete, mesmo assim, não parecia ter se recuperado. E tia Miriam também não era a mesma. Elas não cantavam mais juntas. A kombi não era mais aquele lugar onde eu me sentia tão confortável.
Eu costumava me sentir tão bem que às vezes implorava para ser deixada por último, mesmo que não precisasse, e tia Ivonete sempre atendia meus pedidos com uma piscadinha de olho.
Na semana seguinte a minha mãe deu a notícia que tia Ivonete tinha mudado de ajudante e meu pai fez uma careta que eu não entendi muito bem e falou qualquer coisa assim que tinha caído a casa das mulher ma… e foi interrompido pelo psiuuuuu tão forte da minha mãe, que eu não cheguei a ouvir o que ele tinha dito. Só ouvi minha mãe dizendo que ele ficasse tranquilo que o valor continuaria o mesmo e meu pai rindo e dizendo que era só o que faltava.
A nova ajudante era a tia Eloísa, uma menina legal, mas enjoada também. Parece que ela era a filha da irmã mais velha da tia Ivonete. Eu não gostava do jeito que a tia Eloísa me olhava e nem de como ela ficava toda vaidosa quando os meninos maiores ficavam se engraçando pra ela. A vida na kombi não era mais a mesma. Eu nunca mais implorei pra ser deixada por último e a tia Ivonete nunca mais deu a piscadinha pra mim. Ela foi mudando muito. O cabelo foi deixando crescer. As roupas eram mais apertadas, de outras cores. E o olhar dela mirava mais o chão agora. Tipo o meu. Tia Ivonete ficou feito eu, só que numa versão adulta e eu fui deixando de querer olhá-la. Eu fui cada vez menos gostando de estar na kombi. A bagunça dos meninos foi crescendo cada vez mais e a tia Eloísa, por sua vez, foi ficando cada vez mais chata com as meninas.
Cheguei um dia pro meu pai e perguntei se eu ainda precisava ir de kombi pra escola. Ele perguntou se tinha acontecido alguma coisa, se tia Ivonete tinha feito alguma coisa comigo. Eu não entendi a pergunta, mas tratei de dizer que ela era ótima, que o problema eram os meninos e eu que já tinha crescido um pouco e queria tentar ir de ônibus sozinha. Meus pais levaram um tempo deliberando sobre o meu desejo e acabaram por combinar que eu iria uma vez por semana de ônibus “sozinha”, com minha mãe me seguindo atrás, como se fosse um teste. Caso ela achasse que eu dava conta do recado, após um mês, eu estaria liberada da kombi.
Achei justo o trato. Um mês depois ganhei minha liberdade e aos dez anos eu já ia sozinha pra escola e meu pai me pegava na hora do almoço. Passei a ver tia Ivonete mais de longe, em frente à kombi, esperando os meninos. No começo ela tentava interagir comigo, mas conforme eu fui desviando, ela também foi desistindo. E chegou uma época em que eu simplesmente parei de vê-la. Ela ainda estava lá, mas por algum motivo eu já não a via mais.
Fui crescendo e entendendo muita coisa de mim e do mundo. E alguns dos vazios e das entrelinhas nas memórias que eu tinha de tia Ivonete foram se preenchendo e colorindo. As fichas – para usar a linguagem da minha infância – iam caindo. Eu achei que nunca mais eu veria tia Ivonete. Eu acho que eu não queria vê-la, ao mesmo tempo em que tudo o que eu queria era ver tia Ivonete e dar um grande abraço nela, aquele que eu sempre neguei.
Dia desses, no meio da fila da festa, eu estava dando uns amassos com a crush, quando bem no meio do beijo eu resolvo abrir o olho meio sem querer e vejo uma mulher chegando perto de um grupo de mulheres mais velhas que também estavam na fila. Gelei na hora e cortei o clima. A crush reclamou, mas eu não tinha como explicar nada pra ela naquela hora. Eu fiquei petrificada olhando a tia Ivonete de longe, como eu fazia quando criança. Os cabelos curtos, as roupas folgadas, o All´Star agora roxo, os gestos largos, o mesmo sorriso. Meus olhos encheram. Minha boca abriu. Sorri com o corpo inteiro. E fiquei o resto da fila olhando a tia Ivonete de longe.