
Os meninos e as meninas que passeiam aqui por perto do Dona Matilde são crianças comuns, como vistas em todos os lugares: alegres, tristes, saudáveis, doentes, bonitas, feias, loiras, morenas, mulatas, negras, cuidadosas, aventureiras, preguiçosas, estudiosas, brincalhonas, brigonas, calmas.
Entre elas está Cristine, a minha adorável Cristine, com seus vestidinhos florais, seus cabelos castanhos longos e divididos ao meio, quase sempre com sua amiga Isa. Elas passam de mãos dadas, e Isa parece um pouco mais velha. Talvez tenha uns oito ou nove anos. E ela quem guia Cristine para atravessar a rua na faixa do pedestre. Gosto muito de vê-las atravessando a faixa do pedestre, pois é o momento em que ambas correm e Cristine parece mais bela que nunca, fazendo meu coração acelerar e minhas mãos e meu rosto soarem frio. Quero descer, quero abraçá-la forte, dar-lhe um doce, dinheiro para comprar um brinquedo, mas não posso, não posso tocar Cristine novamente.
Na semana passada, ela surgiu com uma sainha de renda cor-de-rosa e uma blusinha estampada com coraçõezinhos vermelhos, nos pés, uma sapatilha de tecido, também vermelha. Estava sozinha, a minha amada Cristine, e, quando a vi passar, eu estava tão perto, sentada num dos bancos da praça onde ela costuma brincar com seus amiguinhos da rua, principalmente com Isa, não resisti e chamei-a. Ela virou-se para me atender, senti meu corpo estremecer num ímpeto de tomá-la em meus braços, de levá-la para minha casa, fechar a porta, abraçá-la, beijá-la muito, e pedir que me abraçasse e me beijasse e dormisse no meu colo. Eu estava muito nervosa e, quando ela se aproximou, pude sentir o perfume de seus cabelos. Ajoelhei-me e não resisti, abracei seu corpo frágil num abraço longo e cheio de desejo. Ela não tentou se livrar de meus braços, ao contrário, pude sentir seus bracinhos apertarem forte meu pescoço, e seu corpinho de menina colar em meu corpo de mulher. Mas subitamente percebi que, não apenas acariciava suas costas, mas também beijava seu pescoço libidinosamente, por isso fugi do seu abraço com urgência e tentei disfarçar a força de meu desejo. Vi que Cristina tinha as bochechas rosadas, ela me pediu que a abraçasse novamente, no entanto eu disfarcei minha vontade e tentei distraí-la: “Olhe o céu, Cristine! Olhe a beleza do céu, linda Cristine!” Eu poderia convidá-la para subir e passaríamos algumas horas felizes, algumas horas que poderiam custar a minha liberdade, a minha vida, a vida de Cristine. Segurei sua mão direita — as minhas ainda tremiam vergonhosamente -, e caminhei com ela até o carrinho de doces, dei ao doceiro uma nota de R$20,00 como crédito para que minha amada menina gastasse como bem entendesse. Até mais! Saí apressadamente.
Voltei para o prédio, subi para o apartamento e, ao entrar, corri para um banho longo de múltiplos orgasmos. Depois sentei na cama e abri meus arquivos no celular, centenas, milhares de fotos de Cristines. Tantos anos dos mais puros amores, de esforços que transcenderam minhas forças para conter meus desejos, várias consultas a psicólogos, a psiquiatras, tudo em vão. Enfim uma médica cardiologista de 35 anos, atualmente apaixonada por uma menina de 7 anos. Sou uma pedófila, mas não sou uma criminosa.
Lá está ela mais uma vez. “Que linda! Que linda! Que linda!” Nunca esqueceria seu cheiro, a macies de seus cabelos, a delicadeza de seus bracinhos infantis. Estivemos tão perto que foi possível sentir o calor de nossos corpos, as batidas de nossos corações. Nunca vi o seu corpinho nu e nunca verei. Eu não poderia; não nasci para viver em fuga ou encarcerada. Não faria mal a nenhuma Cristine que passasse por minha vida. E, como as outras, ela irá crescer, e eu perderei todo este interesse, esta paixão que sinto hoje. Com o tempo, será apenas uma bela e triste lembrança, como aconteceu com Maria, Corine, Alana, Eloísa.
A câmara do quarto de Liana mostrou que ela foi até o guarda-roupa, tirou dele uma caixa lilás e a abriu sobre a cama, deixando à mostra dezenas de acessórios infantis: laços, pulseiras, anéis, brincos, peças de roupas miúdas. Retirou dela apenas Luci, uma pequena boneca de sua infância, e depositou, com estranho cuidado, naquela mesma caixa, o seu celular, onde estavam registradas todas as informações contidas neste texto. Em seguida despiu-se totalmente e caminhou para a sacada abraçada a Luci, queria ver Cristine brincar pela última vez. Ela chora e ri ao mesmo tempo por algumas horas, até que a mãe da menina chega e a leva para casa. Liana espera um pouco mais até o sol se pôr, tempo suficiente para o psicotrópico fazer efeito. Sente-se calma e feliz, ri alto com os olhos marejados. Nunca havia pensado sobre a utilidade de morar e no 15º andar.
Voarei até o chão onde Cristine passeia, diz ela em voz alta e se põe de pé sobre o corrimão, larga a pequena boneca no chão da sacada está pronta para voar, abre os braços e voa em direção ao seu destino. Jamais seria compreendida, jamais teria um amor correspondido.
A manchete de sua morte dizia: Médica morre ao se jogar nua do 15º andar do edifício onde morava. O texto citava várias tatuagens de meninas com idades entre 5 e 10 anos em seu corpo.
Tereza Du’Zai, natural de Itajaí, SC, é poeta, contista, cronista . O tempo, a loucura, a solidão e a morte são temas recorrentes na obra de Duzai que, desde 2015, tem se dedicado, também, à literatura fantástica e gótica. Vencedora do III Concurso UFES de Literatura na categoria poesia, participou de coletâneas publicadas entre 2016 e 2019 e publicou em revistas e jornais impressos e digitais do Brasil e do exterior, principalmente em Portugal e França.