Café Pingado, Wanderlino Teixeira Leite Netto. – Niterói, RJ: Muiraquitã, 2012.
No geral, os poemas deste livro apresentam reflexões e imagens nítidas sobre temas como nostalgia, cotidiano, recolhimento e passagem do tempo.
O primeiro poema do livro transmite uma atmosfera de apreciação pelas coisas simples da vida e os momentos cotidianos compartilhados com amigos. A linguagem é compreensível e fácil, criando uma sensação de familiaridade. Imagens sensoriais como o café, o vento, o sol e as conversas na cafeteria ajudam a criar uma atmosfera vívida. O poema é longo e aqui estão poucas estrofes para que possam ter uma ideia:
Poemas da cafeteria
Ergo um brinde ao simples, ao descompromissado,
a quem caminha comigo, braço dado
com esse meu jeito de ver a vida.
Aplaudo a quem completa corrida
sem pensar no pódio,
a quem não faz do ódio alimento
nem dá abrigo ao lamento e ao enfado.
Louvo, a cada dia,
estes encontros na cafeteria:
conversas descontraídas com os amigos.
Observar atentamente o que se passa ao lado.
Tal como faço com o café pingado,
sorver a vida em goles lentos.
…
Agorinha mesmo o sol brilhava, neste instante chove.
O vento até então ameno, sopra forte
e se move rumo ao norte.
Sob a marquise da cafeteria,
o cão vadio, antes arredio,
se arrepia e se enrodilha em pernas tolerantes.
Na mesa próxima ao balcão,
duas mulheres joviais dividem um pastel de camarão
e mastigam o fel das crises conjugais.
…
O vapor se desprende do café,
se dispersa levado pelo vento.
Breve momento.
Soa leve o sino da Sé.
Calidoscópio de passantes na calçada.
Cacos da vida que escapole.
Último gole.
Alinhavo impertinências neste fim de tarde.
Vontade vã de desfrutar da eternidade.
O próximo poema personifica um “curumim”, uma figura infantil, como uma parte do sujeito que traz alegria e juventude. Há uma dualidade entre as dores e temores do adulto e a presença brincalhona do curumim. A linguagem foi aprimorada para trazer musicalidade e ritmo ao poema. A mensagem é cativante: o menino está sempre com o adulto.
O curumim
Habita em mim um curumim.
Zomba das minhas dores,
faz troça dos meus temores,
abre picada nas minhas rugas,
reduz as rusgas a quase nada.
Mora comigo um menino amigo.
O poema ‘Flashback’ evoca uma sensação de nostalgia e reflexão sobre memórias passadas. As imagens da infância e adolescência são retratadas como uma conexão profunda entre as diferentes recordações. O sujeito explora as emoções relacionadas a elas de forma intensa.
Flashback
Ando em tempo de recordações.
Com certa constância,
dos mais recônditos rincões
a lembrança tece a trança.
Ontem pela manhã,
o cheiro de manga do quintal de minha infância
impregnou-me as narinas.
Tenho também visitado esquinas da adolescência
onde tudo alude à impaciência, à incompletude.
Até da gravata e do paletó,
dos quais, sem dó nem piedade,
nunca sentira saudade,
me recordei noutro dia.
Igualmente de uma bravata,
que eu jamais repetiria.
“Certos guardados” é um poema reflexivo e emocional, que utiliza a metáfora da compoteira para transmitir a ideia de que a vida é repleta de lembranças e experiências diversas, algumas doces e outras amargas, que moldam a nossa trajetória e nos acompanham ao longo dos anos. O sujeito nos convida a pensar sobre a importância de preservar memórias e abraçar as diferentes facetas da existência, mesmo as mais difíceis.
Certos guardados
Numa prateleira, abrigo a compoteira
que minha mãe ganhou em suas núpcias.
Tem cores múltiplas e uns motivos chineses.
Guardo nela um chumaço de saudade, cacos de vida,
um certo abraço, uma foto esmaecida, guloseimas.
Algumas vezes, pequenas teimas
e uma pálida esperança que trago comigo da mais tenra idade.
Também um sonho que persigo desde antigamente.
Afora uma lembrança impertinente que não vai embora.
O poema “Espelho meu” retrata o envelhecimento e a percepção de que o tempo passou. O sujeito explora as emoções sobre a transitoriedade da juventude. A imagem do espelho embaciado é uma metáfora visualmente poderosa; o espelho é o que nos mostra a realidade do corpo físico.
Espelho meu
Esse olhar levemente opaco,
esse naco de tristeza expresso nele,
essa pele de brilho escasso,
esse traço de rugas e rusgas,
esses fios brancos, esse viço ausente,
essa distância do que passou,
essa fragrância de antigamente…
Meu espelho embaciou.
Este poema abaixo expressa um desejo de ser tanto um rochedo imóvel quanto uma ave migratória livre. O sujeito reflete e explora outras aspirações. Há uma dualidade entre a estabilidade e a liberdade.
Querências
Quisera ser rochedo em mar aberto,
enfrentar sem medo o isolamento,
o frio, o relento, os vendavais.
Quisera mais:
percorrer as trajetórias das aves migratórias.
Enfim, quisera ser assim:
um tanto pedra, um tanto asa,
enquanto a vida medra
na pequenez do mundo, na vastidão da casa.
A imagem da amendoeira como um observador calmo da agitação humana é uma metáfora atraente. O poema abaixo expressa uma sensação de admiração pela simplicidade e placidez da árvore.
Amendoeira
Vejo a quieta amendoeira e a invejo.
Agita-se apenas quando a aragem vira vento
e faz farfalhar a folhagem.
Em qualquer outro momento,
cumpre a missão de maneira plena:
observa, serena, a insana sofreguidão humana.
Coisa mais sem graça, diz
quem passa sob a sombra dela.
Mas ela nem dá trela para quem não tem raiz.
O poema abaixo apresenta um contraste entre a rapidez do mundo moderno e a tranquilidade de uma lesma. A imagem da lesma traçando um rastro de prata é intrigante.

Dicotomia
Em contraste a quem passa velozmente
em seus corcéis de lata,
uma lesma indolente
desenha sem pressa
um rastro de prata.
O poema “Concerto” combina elementos da natureza como o canto do bem-te-vi e a música de Chopin, para transmitir uma sensação de harmonia e dissonância na vida. A comparação do canto do pássaro com os sons urbanos é muito interessante, o que fortalece a conexão poética entre esses elementos.
Concerto
Há um bem-te-vi no galho seco, empoleirado,
bem ao lado da janela da sala.
Seu canto, ora ressoa, ora se cala,
feito o som estridente das buzinas
e o trilar dos apitos dos guardas nas esquinas.
Somam-se a eles, nesta manhã,
noturnos de Chopin.
A vida assim se completa,
repleta de harmonia e dissonâncias.
Dia após dia, em todas as instâncias.
O poema abaixo aborda a impermanência e a fragilidade da vida. As imagens das flores efêmeras e do presente que se desfaz na “fogueira do fugaz” são fortes. A linguagem poética e a reflexão filosófica são bem trabalhadas, criando um poema envolvente.
Poema da manhã sem tarde
Em tudo a impermanência:
nos amores contingenciais,
na vida efêmera das flores.
Em tudo a ausência do constante,
quando até o instante se transforma
naquilo que já não é.
Nada se abriga sob teto consistente,
nada se obriga,
nada se pauta no amanhã.
Vive-se o presente da manhã sem tarde:
tudo urge, tudo arde, tudo se desfaz
na crepitante fogueira do fugaz.
O poema abaixo aborda uma reflexão profunda sobre os mistérios da vida, as inquietações e as lições a serem aprendidas. A linguagem é evocativa e as perguntas levantadas despertam até um estudo filosófico.
Nas franjas do anoitecer
O dia encerra seu roteiro.
No alaranjado do céu,
o contorno da serra se mostra por inteiro.
Tudo parece posto em sossego,
mas eu me pego a ruminar espantos.
Quantos mistérios a pedir desvendamentos?
Quantos lamentos, quantas inquietações?
Quantas lições por aprender ainda?
Quanta vinda, quanta ida?
Quanta sombra e quanta luz?
Quanta morte em cada vida?
Quanta culpa, quanta cruz?
O último poema da série aborda a passagem do tempo e o retorno de memórias antigas. A imagem do ontem como uma lâmina de aço entre as costelas é poderosa e evoca uma sensação de confronto com o passado. A linguagem e a metáfora são bem utilizadas para transmitir a ideia central do poema.
Faca de ponta
Quando o tempo fecha o cerco e o viço esvoaça,
o ontem recrudesce em rebuliço.
Tece a trama de uma teia,
brota feito grama quando passa a chuva fina,
é cacho de uva em tempo de colheita,
água de mina assim constante.
Não fica na espreita,
não dispensa um só instante.
O ontem, quando o Tempo aperta o laço,
quando espalha tintas nos dorsos das telas,
é lâmina de aço,
estilete espetado entre as costelas.
Ilustrações: Antero Saari
Texto de Solange Firmino – Rio de Janeiro (RJ). É Professora de Português e Literatura. Venceu dois grandes prêmios de literatura, sendo o último em 2021, com o 2º lugar no Prêmio da Biblioteca Pública do Paraná, na categoria Literatura Infantil. Possui 7 livros de poesia publicados.
Respostas de 3
Ótima postagem. Obrigada, Jandira! Beijos
Beleza de análise!
Obrigada, eu, Solange, pela bela matéria, beijo.