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Imagem: Cezar Loureiro |
No terraço em frente o vizinho colocava as cervejas na caixa de isopor com gelo picado até a borda. Abriu uma das latas e levou à boca. De onde eu estava pude pressentir a delícia daquele gole. Ergueu um brinde em minha direção. Com a outra mão esticou confiante a camisa amarela. Apontou a churrasqueira e o saco de carvão, avisando da farra.
– Vai ver o jogo onde?
O grito dele se espalhou pela rua. Eu não queria gritar. Apontei para dentro de casa. Ele rodopiou um dos indicadores na horizontal querendo dizer “mais tarde” e em seguida o mesmo dedo apontou para todos os preparativos ao redor. Mas acabou berrando de novo.
– Aparece aí depois!
Uma bateria de morteiros estourou no céu, o eco ganhou a cidade. Um balão carregando a bandeira nacional vencia as alturas. Quanto mais subia, menor ficava na imensidão azul daquele início de tarde.
A verdade é que desde cedo havia um pressentimento bom pairando sobre os prédios, uma certa alegria profética, embora contida.
O problema todo é que eu não me sentia assim. Para ser franco não me sentia nada, menos que qualquer uma das milhões de fitinhas verdes e amarelas penduradas nas janelas da cidade. Elas pelo menos iam alegres com a vontade do vento.
Voltei-me para dentro e liguei a televisão. Ainda faltavam três horas para o jogo começar. Na mesa redonda o comentarista de renome dizia que era o fim do futebol arte, que se ganhássemos aquela copa seria sem brilho nem beleza. Mas eram agora outros tempos, a força física acima da técnica, o Brasil não podia jogar diferente, outro argumentava e o primeiro não se dava por vencido: “Eu sinto saudades da seleção de 82”, e Débora passou exatamente nesse ponto. Passou e parou. Voltou para me olhar bem fundo, ferida: “Eu também sinto saudades da seleção de 82”.
Quando deu as costas, vi que estava vestida para sair, ou melhor, para ir embora, para nunca mais voltar ao menos por um longo tempo. A mochila nas costas, a mala com rodinhas. Ela nunca foi de ter muita roupa, deve estar levando tudo, eu pensei na hora. Imaginei o armário vazio, o apartamento, o mundo depois que ela bateu a porta sem nem me dizer um tchau, por mais seco que fosse. Muito menos disse onde veria o jogo.
Débora e eu começamos a namorar na copa de 82, quando ela parou atrás de mim e depois chegou perto para dizer qualquer coisa sobre o nariz do Zico que eu pintava no chão da nossa rua. Não nos desgrudamos mais pelo resto da copa, enfeitiçados feito um meio-campo com Cerezo, Falcão, Zico e Sócrates. Depois da tragédia contra a Itália ela me abraçou e disse “quero ficar com você pra sempre”. “Pelo resto das copas?”, eu perguntei feliz. “Por todas que eu viver”, ela assentiu.
Então se para outros casais as lembranças dos primeiros tempos de namoro eram músicas ou filmes, para nós era um passe do Zico, uma bomba do Éder. “Lembra que você me girou pela sala lá de casa nesse gol do Júnior contra a Argentina? ”, e ela sempre tocava no assunto quando reprisavam o lance na TV.
Namoramos e noivamos ao longo de oito anos, passando pela Copa de 86. Estávamos em lua-de-mel na de 90. E numa praia deserta em Fernando de Noronha ela me perguntou desanimada depois do jogo em que perdemos para a Argentina: “Será que um dia a gente vai ver o Brasil ser campeão? ”. Triste, não respondi. “Amanhã iremos ver os golfinhos”, ela me prometeu sem entusiasmo.
Essas lembranças misturavam-se às imagens da TV a que eu assistia sem expectativa ou nervosismo. Flashes chegavam do estádio cheio e das praças que reuniam multidões no país inteiro, e eu tentando entender os motivos porque meu casamento estava acabando. Cansava de procurar razões e terminava pensando na decadência dos esquemas táticos. Inquietava-me se acabara o amor como acabaram os pontas autênticos.
Estouraram outros fogos e o otimismo lá de fora entrava pela janela querendo me convencer a ficar contente também. “Gente da nossa idade nunca viu o Brasil ser campeão do mundo”, era a nossa maior mágoa, minha e de Débora. “Mas em 70 vocês já eram nascidos”, e nossos pais tentavam nos consolar. Éramos bebês, não lembramos de nada, a copa de 70 não valeu para nós.
Talvez hoje fosse o dia, Débora, o dia de vermos o Brasil campeão, e logo em cima da Itália, trauma da nossa adolescência. Só que você bateu a porta, saiu por essa cidade embandeirada sem explicar exatamente porquê. Então essa copa também não vai valer, Débora. Mesmo que o Brasil ganhe, que o país pare e o povo dance até de manhã, sem você essa copa também não vai valer para mim. Vou seguir frustrado, mas procurando ter esperança de que você vai voltar e vamos assistir juntos à final da copa de 98. É com essa copa que eu vou contar a partir de agora.
Quando os times entraram em campo desliguei a TV e saí de casa. O corredor frio e deserto do prédio misturava ao hino nacional o falatório que vinha dos apartamentos. Logo o jogo começou e eu ganhei a rua vazia. Apressado, caminhava por cinco ou seis iguais, até sair na avenida principal do bairro que me pareceu um enorme sepulcro, uma solidão única de carros estacionados e árvores antigas. De quando em quando vinham das janelas gritos de ansiedade, palavrões incontinentes e expressões de desespero pelo lance que poderia ter dado certo e não deu. Às vezes estourava um morteiro solitário e o barulho logo se perdia, como se estivesse arrependido de estourar antes da hora. Uma angústia quase palpável sustentava a placidez do céu azul e alheio a milhões de nervos em pandarecos cá em baixo.
“O Romário não tá bem hoje”, alguém falou quando passei por um botequim. Olhei lá para dentro. Mais de dez homens aglomerados em torno de uma TV pequena improvisavam uma resenha de intervalo. As laterais, os espaços pela direita, eles apontavam erros e tensos tragavam seus cigarros, batiam as mãos no balcão. Quando o Brasil voltou a campo, retomei minha andança sem esperança e rumo.
Sentei no primeiro banco que vi na beira da praia. Meus olhos vieram lentos de uma ponta à outra e absorveram bem devagar aquela paisagem com azuis em excesso. Pombos e gaivotas brigavam com o vento. Um surfista solitário descia em ondas fracas. Sem dificuldade vinha até a arrebentação e de lá mesmo voltava na direção do horizonte para esperar outra onda. “Esse não deve gostar de futebol”, concluí considerando improvável que dois homens estivessem ali porque o casamento de ambos terminou justamente no dia em que o Brasil estava decidindo uma copa do mundo.
Ele fazia rasgos ousados na água, era bom naquilo. Absorto nas manobras, quase esqueci meu destino incerto e a noite difícil que me esperava na cama vazia. Quase meia hora fiquei olhando ele enfeitar a solidão daquele mar, que parecia não caber na tarde. Até que saiu da água e veio em minha direção sacudindo os cabelos, e quando chegou perto parecia nervoso. Perguntou sobre o jogo. Ali, no calçadão deserto, só os pombos e as gaivotas, como eu poderia saber? Mesmo assim disse que não tinha ouvido gritaria, ninguém deveria ter feito gol ainda. Ele jogou os cabelos para trás, se fosse mais novo do que eu, era pouca coisa. “Cara, eu tava muito nervoso, uma pilha, vim pegar onda antes que tivesse um troço em casa. É muita adrenalina Brasil na decisão”. Foi embora e me deixou sozinho com a repetição das ondas.
Também não me demorei muito por ali. O oceano solitário de repente ficou pequeno para meu abandono. Era inevitável voltar para casa e deparar com os cacos daquela vida a dois.
A noite começava a chegar e a escuridão nascendo deixava as ruas mais desertas, mas eu não tinha bem a noção da hora. Por onde passava, não ouvia nem festa nem choro. De uma janela chegava som de TV, o comentarista dizia o que era necessário para o Brasil na prorrogação. Na rua apenas aquela esperança entalada de angústia brotava invisível das goelas da calçada.
Andei mais de uma hora desde que saí de casa, portanto não daria tempo de voltar caminhando e ainda pegar o segundo tempo da prorrogação. Onde era mesmo aquele botequim imundo com aquela televisão minúscula? Cheguei a olhar em volta na tola esperança de um ônibus ou de um táxi. E foi aí que me peguei nervoso, a boca seca, o coração aos saltos e dei início a uma corrida desabalada de volta para casa. O homem abandonado cedeu parte de seu espaço ao torcedor na busca do resgate de toda uma geração: ver a seleção brasileira campeã do mundo, enfim. Débora, Débora! Tantos anos esperando juntos por isso! E eu parava alguns instantes recuperando fôlego. Aí esticava os ouvidos. Nenhum grito de dor ou alegria rasgava a tensão silenciosa da cidade vazia. Espaçadamente, apenas um ou outro urro de alívio ou desespero. Chegava das janelas a renitente ladainha de TVs e rádios, sem que me deixasse a par do que de fato acontecia em campo. E eu corria e parava, prestava atenção aos barulhos, e voltava a correr, desafiando a avenida imensa de angústia e aflição.
Perdeu! Gritaram quando dobrei minha rua. Defendeu! Ouvi nervoso, tentando acertar a fechadura da portaria do prédio. É gol! E eu já no meio da escada subindo de quatro em quatro degraus: Porra! Foi pros pênaltis! Gritei batendo a porta do apartamento e correndo na direção da TV, que, entretanto, estava ligada.
Em frente a ela e ajoelhada no velho tapete, Débora tinha as mãos juntas, como se diante de um oratório. “Ué, você aqui?” Perguntei olhando mais para o monitor do que para ela. “É, fiquei andando, resolvi voltar”, e também mal me olhou, grudada na tela. Corri para a beira do sofá, o suor pingando da testa, a respiração que não vinha de cansaço e nervosismo. “O que é que tá acontecendo aí?”, consegui perguntar o que realmente interessava. “Se a Itália perder a gente é campeão”, ela respondeu e emendou um gesto para que eu não perguntasse mais nada.
Coloquei minhas mãos sobre seus ombros, comprimindo-os sem perceber. Roberto Baggio pegou a bola e botou na marca. “Vai perder!”, agourei. “Vai, vai sim!”, ela acreditava. Todo o sonho de uma vida ali, naquele instante. Ela esticou os braços para trás, deu-me as mãos num aperto de vida ou de morte, e assim ficamos durante toda a eternidade que durou do apito do juiz à bola passando lá no alto, bem longe do gol.
Quase faltou ar para o grito de toda uma geração contido por anos de frustração. Lá fora, a cidade parecia desabar num berreiro desenfreado. Nos abraçamos e nos beijamos, redimidos de 82, de 86, 90…de todas as copas. Pulando um nos braços do outro aos gritos de campeão, nos redimimos também como casal.
Quando adormecemos nus e abraçados, já de manhã, ainda havia cheiro de churrasco e batuque vindos do vizinho da frente.
André Giusti nasceu em maio de 1968 no Rio de Janeiro e mora em Brasília desde a década de 90. Entre contos, crônicas e poemas, A Maturidade Angustiada (Penalux, 2017) e Os Filmes em que Morremos de Amor (Patuá, 2016) são seus livros mais recentes. Atualmente trabalha em seu primeiro romance. Também é jornalista. Mantém site e blog em www.andregiusti.com.br